As palavras têm
força
Adriana
Soares Dutra
Hemerson
Luiz Pase
Umberto
Eco disse uma vez que quando a humanidade perde uma língua, perde
algo que nem conhece. O brilhante autor se referia a possibilidade do
extermínio de tribos africanas fazer desaparecer as pessoas e a sua
língua. As palavras, os jargões, as gírias têm muita força pois
traduzem coisas, materializam ideias, valores e concepções de
mundo. Existem áreas onde isso é ainda mais evidente, como nas
políticas públicas. Quanta disputa retórica e discursiva ocorre
entre uma eleição e a efetivação de uma política pública? E
depois, quanta discussão ocorre sobre seus resultados, sobre sua
eficiência, eficácia e efetividade, sobre o público ao qual a
política se destina?
A
concepção que afirma o papel das ideias, dos valores e dos
argumentos nas políticas públicas é sistematicamente utilizada
para explicar resultados, seja acionando pesquisadores renomados,
seja tencionando a partir de valores morais religiosos.
Não
obstante, existem algumas áreas de políticas públicas onde essas
disputas pela 'palavra' se dão a partir da tentativa e erro em
oposição ao tencionamento de valores e, muitas vezes, até de
pesquisas, essa área é o meio ambiente. Como prever ou antecipar os
resultados de uma ação de preservação ambiental sem que um
desastre irrompa, nos afrontando? Essa é uma das grandes lições
que os acontecimentos em Mariana (2015) e em Brumadinho (2019)
insistem em fazer notar. Qual o limite que uma empresa tem para
explorar a natureza? Qual o limite da natureza? Até aonde ela pode
suportar?
Considerando
que a história possibilita o aprendizado perguntamos, será possível
ainda negligenciar o investimento em prevenção e preparação? Se o
risco não aparece, ele não está presente na disputa discursiva e
retórica, se não está presente não pode ser antecipado, se não
pode ser antecipado nos destrói.
Quando o desastre
emerge e já não se torna possível adotar a estratégia de
silenciamento, normalmente a preferida dos representantes dos
segmentos dominantes, observa-se uma cuidadosa seleção sobre o que
e como dizer.
A
evidência da importância das palavras é perfeitamente observável
na disputa por termos como: tragédia x desastre, desastre natural x
desastre ambiental, zonas de atenção x áreas de risco, acidente
industrial x crime ambiental. As empresas que exploram o meio
ambiente diretamente como grandes hidrelétricas, mineradoras,
petrolíferas, do setor do agronegócio, todas disputam diuturnamente
as palavras e seu conteúdo.
Este
é o grande problema: o risco nunca é avaliado e as medidas
protetivas não são perfeitamente adotadas até a emergência do
desastre. Para justificar este posicionamento, o qual envolve
aspectos econômicos e políticos, a produção do discurso se
apresenta de maneira bastante eficaz, produzindo consensos e
apaziguando ânimos. Sempre é possível ir mais longe, já que não
há evidência da tragédia. Os casos de Mariana e de Brumadinho,
ambos envolvendo a empresa Vale, mostram que depois do impacto
aparecem evidências de que existiam riscos que foram relativizados
discursivamente.
Em reportagem do
Jornal Folha de São Paulo, de 13 de fevereiro de 2019, a empresa
nega que tenha havido apontamento de risco de rompimento iminente da
Barragem de Brumadinho por parte dos técnicos que desenvolveram o
estudo. Optaram por falar em "zonas de atenção" e
"cenários hipotéticos", distanciando-se do desastre que
se produzia em ritmo acelerado. A escolha dos termos revela, em
última instância, a ausência de medidas que poderiam ser tomadas
para a proteção das pessoas, incluindo os trabalhadores da própria
Vale, caso o risco fosse realmente enfrentado.
Em uma outra
perspectiva, o que ocorreu em Brumadinho, três anos depois de
Mariana, não pode ser compreendido como incidente, acidente ou
eventualidade. Constituem-se em crimes ambientais, produtores de
verdadeiros desastres, com consequências nefastas, especialmente
para os segmentos mais pobres da população. Sustentados por
decisões pautadas em interesses políticos e econômicos, revelam a
sobreposição do lucro em detrimento do valor da vida e a hegemonia
do desenvolvimento neoextrativista, a partir do qual não há limites
para a exploração dos recursos naturais, como defende o professor
Henri Acselrad. Compreender esta lógica é também disputar o
discurso, o poder das palavras e suas intenções, porém sob a ótica
dos atingidos.