segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A Crise de Legitimidade dos Prefeitos das Minorias

 

A Crise de Legitimidade dos Prefeitos das Minorias

Ana Paula Dupuy Patella[1]

 A primeira experiência democrática que se tem conhecimento, no Ocidente, remota à Grécia Antiga, mais precisamente à cidade de Atenas, onde todas as decisões eram tomadas coletivamente, depois de discussões públicas, da qual participavam todos os homens, livres, abastados, com mais de 30 anos de idade. Daí surge o conceito – que, portanto, referia-se ao exercício do poder diretamente pelos cidadãos (PASE, 2016).

Suprimidos na Idade Média Ocidental, o conceito e as práticas democráticas são retomados na modernidade, a partir de quando o conceito de cidadão vai se alargando – o que dificulta a implementação da democracia direta, nos moldes daquela vista na Grécia Antiga e faz nascer a ideia de representação. Na democracia representativa, a igualdade e a liberdade dos cidadãos são garantidas mediante o voto. Todos têm o mesmo direito, sendo dada a mesma importância a cada um dos votos (PASE, 2016).

A partir dessa ideia, surgem, nas teorias contemporâneas, duas importantes correntes: “de um lado, predomina uma interpretação cujo cerne considera os procedimentos políticos do regime; e, de outro, uma interpretação que prima pela análise da substância da democracia” (PASE, 2016, p. 16).

Nessa primeira linha, de democracia enquanto procedimento, para Schumpeter (1961, p. 291), um dos expoentes da concepção minimalista da democracia, o regime é apenas um método. Em outras palavras, segundo o autor, democracia é “um certo tipo de arranjo institucional para se alcançarem decisões políticas - legislativas e administrativas -, e, portanto, não pode ser um fim em si mesma, não importando as decisões que produza sob condições históricas dadas”.

Em resumo, de acordo com essa concepção, para se caracterizar um regime como democrático, basta que sejam seguidas as condições procedimentais acima descritas, não relevando, para tanto, “as questões de igualdade social e da responsabilidade pública ou accountability” (PASE, 2016, p. 17).

Por outro lado, a corrente que considera importante a substantividade para caracterizar o regime democrático afirma a necessidade de se “superar o mito que reduz a democracia ao processo técnico, sem examinar o seu verdadeiro conteúdo, que é o resultado da soma de valores éticos e culturais historicamente determinados” (VALDÉS, 2002, p. 36).

Quer dizer, “Esse polo teórico constitui uma interpretação diferenciada e sofisticada na definição de democracia, na medida em que a conceitua através de características substantivas, cujo princípio é a igualdade de condições sociais, intelectuais e culturais” (PASE, 2016, p. 18).

Deste modo, democracia substancial pode ser definida como aquela democracia de conteúdo, que pressupõe a realização dos direitos fundamentais e, mais que isso, a realização dos cidadãos em todas as suas potencialidades. Por óbvio, essa concepção democrática não dispensa a atenção à democracia procedimental, somente pautada no construto do desenho institucional. Ao contrário, esta pode ser encarada como um meio de alcance daquela (BAQUERO, 2003).

Na América Latina, hoje, vemos regimes democráticos que aparentemente atendem o mínimo procedimental exigido para a caracterização da democracia shumpeteriana, tendo em vista que realizam eleições gerais, periódicas, com a legitimação e a efetiva assunção do poder pelos vencedores.

No entanto, não se pode dizer o mesmo do caráter substancial da democracia. Além das sabidas dificuldades que a população enfrenta para ver garantidos os mínimos necessários para a subsistência digna, o procedimento eleitoral não tem garantido uma relevante legitimidade dos eleitos junto aos cidadãos, sobretudo em virtude da descrença na prática política inegável nos estados latino-americanos – que gera ausência de engajamento, participação e consequentemente sentimento de representatividade.

Além desse desencontro entre regras democráticas e sentimento de representatividade subsumível das democracias latinoamerica, há, na legislação brasileira, uma previsão normativa específica que pode estar ocasionando uma crise de legitimidade nos representantes do Executivo Municipal, em colégios eleitorais de menos de duzentos mil eleitores.

Justamente para garantir a legitimidade dos eleitos, na grande maioria das democracias ocidentais, o sistema de eleição dos cargos da majoritária se dá em duas voltas, exigindo-se, assim, que os eleitos atinjam a maioria absoluta dos votos válidos.

No Brasil, a Constituição Federal prevê o sistema em duas voltas para as eleições presidenciais, de governadores e de prefeitos em municípios com mais de duzentos mil eleitores.

Conforme prevê o artigo 29, inciso II, da Constituição Federal, a eleição do Prefeito e Vice-Prefeito, será “realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores” (BRASIL, 1988).

Essa regra do artigo 77 da Constituição Federal, é justamente a que prevê a realização de dois turnos eleitorais para garantir que o eleito alcance a maioria absoluta dos votos (BRASIL, 1988).

Acontece que, com a exceção estabelecida de que municípios com menos de duzentos mil eleitores não terão a realização de segundo turno, ocorre a eleição de representantes para o cargo do executivo municipal, sem que os mesmos tenham atingido a maioria absoluta dos votos válidos.

Ou seja, prefeitos de Municípios de menos de duzentos mil eleitores acabam por ser eleitos mesmo sem ser a escolha da maioria dos eleitores politicamente mobilizados que se deslocaram até a urna para expressar a sua opção sem anular ou votar em branco. Por exemplo, em um Município com quatro candidaturas majoritárias, quando um candidato atinge 20% dos votos válidos, outros dois candidatos atingem 25% dos votos válidos cada um e o quarto candidato obtém 30% dos votos válidos, este último se elege mesmo não sendo a opção de 70% dos eleitores que se mobilizaram e fizeram uma escolha.

Obviamente, tal situação (sobretudo em tempos de crise econômica e política, que ocasionam acirramento dos ânimos e agravamento das necessidades da população em geral) impacta diretamente na legitimidade dos eleitos, que já iniciam os seus mandatos em flagrante insatisfação de mais da metade da população.

Tal desconexão entre a vontade da maioria dos eleitores e o resultado do pleito eleitoral, talvez desconsiderada pela democracia procedimental e principalmente pela previsão constitucional, pode atingir quase a totalidade dos Municípios brasileiros, já que apenas 1,7% (um virgula sete por cento) dos colégios eleitorais brasileiros alcançam mais de duzentos mil eleitores e realizam segundo turno eleitoral (segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral).

Como visto, aquilo que parece ser um problema apenas da concepção substancial da democracia pode revelar um dos vícios procedimentais que contribuem para a crise política e para a descrença popular na mobilização como saída para o enfrentamento dos problemas sociais, porque em quase 99% dos Municípios brasileiros o voto da maioria não é necessariamente acatado.

 Referências Bibliográficas

BAQUERO, Marcelo. Construindo uma outra sociedade no Brasil. O papel do capital social na estruturação da cultura política participativa, Revista Sociologia e Política, Curitiba, n. 21, p. 83-108, nov/2003.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

PASE, Hemerson Luiz. Capital Social e Desenvolvimento: a experiência do Rio Grande do Sul. Pelots: Ed. UFPel, 2016.

SCHUMPETER, Joseph. A. Sociologia do imperialismo. In: SCHUMPETER, J. A. Imperialismo e classes sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.

VALDÉS, Julio. Culture and development for debate. Latin American Perspectives. Issue, 125, vol. 29, n. 4, 2002.



[1] Advogada, Mestre em Direito e Justiça Social e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: anapaulapatella@gmail.com.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Capital social e desenvolvimento sustentável: o oeste do Paraná em pauta

 Capital social e desenvolvimento sustentável: o oeste do Paraná em pauta

Josieli Santini[1]

O desenvolvimento sustentável, apesar de ser amplamente debatido no século XXI, é um tema recente na agenda das Nações Unidas. O conceito clássico remonta ao Relatório idealizado pela norueguesa Gro Harlem Brundtland, Nosso Futuro Comum de 1991. Segundo esse relatório (1991), o desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que atende as necessidades das gerações presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades.

Como resposta à tentativa de trazer à tona uma nova forma de desenvolvimento, cabe pontuar a Conferência Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, também conhecida como Cúpula da Terra ou Rio 92, que ocorreu no Rio de Janeiro, em 1992. O encontro teve como consequência, dentre outras, a Declaração do Rio, que estabeleceu o desenvolvimento sustentável como sendo aquele que possui três dimensões interligadas: a social, a econômica e a ambiental. Em outras palavras, a proteção ambiental não poderia ocorrer sem que houvesse inclusão social, combate às desigualdades e crescimento econômico.

Assim surge a Agenda 21, predecessora da Agenda 2030, com o intuito de enfrentar os desafios consequentes de um modelo de desenvolvimento insustentável. A agenda foi acompanhada do estabelecimento de 8 objetivos, chamados de Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Estes prevaleceram entre 2000 e 2015 e foram o primeiro arcabouço global para políticas públicas de desenvolvimento e se mostraram como mecanismo eficaz para perseguir a sustentabilidade.

Entretanto, haviam dois processos em paralelo, processos que deveriam andar juntos: os ODM com foco principal na dimensão social e o desenvolvimento sustentável com foco na sustentabilidade ambiental. Como vimos, o conceito de desenvolvimento sustentável possui tripés alicerçados na inclusão social, no crescimento econômico e na proteção ambiental. Sendo assim, viu-se a necessidade de tratar os objetivos e a própria agenda de modo holístico, abarcando não somente a dimensão social, mas também a econômica e a ambiental. A esses três pilares, ainda, deve-se acrescentar a dimensão institucional, que diz respeito sobre as questões de governança, participação de grupos de interesse e da sociedade civil organizada como parceiros imprescindíveis na promoção de um desenvolvimento sustentável (DUQUE, 2013).

Neste contexto de integração ambiental, econômica e social temos, em 2015, a implementação da Agenda 2030, cujo lema é “Não deixar ninguém para trás”. Com o propósito de traçar um plano de ação para a comunidade internacional, governos locais e população, temos a constituição de 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), acompanhados de 169 metas que vigorarão até 2030. O princípio da Agenda, em conformidade com o lema, é a universalidade do alcance das políticas, ou seja, pretende-se contemplar as pessoas independente de etnia, cor ou gênero, através de parceria multisetoriais.

No entanto, a universalidade não quer dizer que as políticas precisam ser uniformes. Em outras palavras, os ODS são globais e ideais e não existe uma única fórmula para a implementação. O Brasil é um país de dimensões continentais e diversidade sociocultural e, por conseguinte, exige uma adaptação dos ODS e suas respectivas metas. Em outras palavras, cada país tem acesso aos ODS e cabe às autoridades adaptarem eles para a realidade local.

 É deste modo que ocorre a localização ou territorialização dos ODS. Localização é o processo de levar em consideração contextos subnacionais, como municípios e estados, a fim de que a Agenda alcance todas as realidades (UNITED NATIONS HABITAT, tradução nossa, 2016). No Brasil o órgão responsável por adaptar os ODS à realidade local é o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Com o alinhamento dos objetivos e metas à realidade local, os formuladores de políticas têm à sua disposição um mapa para guiar as ações na mesma direção.

A localização dos ODS tem a missão de aproximar governos, sociedade civil e setor privado, ampliando a pluralidade na participação política e ações decisórias. Para isso, a cooperação e associação entre esses atores são necessárias para que a Agenda 2030 seja implementada e alcance, principalmente, as pessoas que estão em vulnerabilidade. Neste contexto, o ODS 17 se traduz nas maneiras com que as parcerias e os meios de implementação podem ser concretizados. Em outras palavras, “para haver desenvolvimento local é necessário que se criem redes sociais que promovam confiança, cooperação e responsabilidade” (DUQUE, 2013, p. 4)

Um caso de sucesso no que tange a parceria para a implementação dos ODS em âmbito subnacional é o programa Oeste 2030. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) firmou parceria com a Itaipu binacional para sensibilizar a comunidade local e promover o cumprimento dos ODS no oeste do estado do Paraná. O projeto com foco na segurança hídrica contempla 54 municípios do estado e tem participação do setor público na figura das prefeituras, do setor privado representado pelas associações comerciais e cooperativas (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS, 2019). Além disso, conta com o apoio e investimento da Itaipu binacional.

O relatório Panorama ODS: Oeste do Paraná em Números[2] é documento fruto da parceria multisetorial no oeste do Paraná. A ideia é levantar dados e sofisticar os indicadores para alcançar de forma mais abrangente e participativa os ODS na região. De acordo com o diretor de coordenação da Itaipu Binacional, Newton Kaminski, o projeto é importante também para o Brasil, pois a territorialização dos ODS colabora para que haja maior profundidade nas ações em prol do desenvolvimento sustentável, visando o bem-estar de todos os envolvidos (PNUD, 2019). Nesse caso, Buarque (2002 apud BILERT et al., 2011) destaca que o desenvolvimento local requer iniciativas e mobilização da sociedade em prol de um projeto coletivo.

Assim sendo, o processo social que tem como resultado o bem da coletividade, com base na confiança, reciprocidade e solidariedade é definido pelo cientista político Robert Putnam como capital social (PASE, 2006). O capital social proporciona o engajamento das sociedades em redes e auxilia na articulação de mudanças sociais significativas (ROCHA et al., 2017). A sustentabilidade visa romper o padrão de desenvolvimento que tem procedentes no uso desenfreado dos recursos naturais e o caso paranaense evidencia como a cooperação entre diversos atores em prol de um bem comum pode se transformar em um instrumento para alcançar o desenvolvimento territorial sustentável (MORAES, 2003).

 

Bibliografia

BRUNDTLAND, Gro Harlem. Nosso futuro comum: comissão mundial sobre meio ambiente e desenvolvimento. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991.

DUQUE, Eduardo. Capital social como instrumento de desenvolvimento sustentável. Revista Configurações[online], 11, 2013. Disponível em: https://journals.openedition.org/configuracoes/1862. Acesso em 28/09/2020.

ROCHA, Clarissa Maria Ramalho Sá, et al. O desenvolvimento de políticas públicas e a influência do capital social na construção do desenvolvimento local sustentável. Revista Brasileira de Gestão Ambiental e Sustentabilidade, v.4, nº 8, p. 463- 474, 2017.

            UNITED NATIONS HABITAT. Roadmap for localizing the SDGs: implementation and monitoring at subnational level. Disponível em: https://unhabitat.org/roadmap-for-localizing-the-sdgs-implementation-and-monitoring-at-subnational-level. Acesso em: 28/09/2020.

            CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS. Relatório aponta que oeste do Paraná avançou no cumprimento de metas da ONU. 2019. Disponível em: https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/relatorio-aponta-que-oeste-do-parana-avancou-no-cumprimento-de-metas-da-onu. Acesso em: 28/09/2020.

            PASE, Hemerson Luiz. Capital social e desenvolvimento: a experiência do Rio Grande do Sul. Pelotas: Editora UFPel, 2016.

            MORAES, Jorge Luiz Amaral de. Capital social e desenvolvimento regional. In: Correa, S. M. S. (Org.). Capital social e desenvolvimento regional. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003.

            PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). Projeto Oeste 2030 lança diagnóstico para estimular municipalização dos ODS no Oeste do Paraná. 2019. Disponível em: https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2019/projeto-oeste-2030-lanca-diagnostico-para-estimular-municipaliza.html . Acesso em: 28/09/2020.

BILERT, Vania Silva de Souza et al. A contribuição do capital social para o desenvolvimento local sustentável. Ciências Sociais Aplicadas em Revista, v. 11, nº 21, p. 29-42, 2011.

 



[1] Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG e pesquisadora voluntária do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas e Opinião – NEPPU/FURG. E-mail: jsantini@furg.br

²https://oestepr2030.org.br/2018/11/20/diagnostico-da-regiao-oeste-do-parana/

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Uma análise da categoria corrupção em Hobbes

 Uma análise da categoria corrupção em Hobbes

Danieli Veleda Moura

Thomas Hobbes é autor obrigatório para todos aqueles que se interessam por política, embora sua contribuição intelectual seja diminuída porque, frequentemente, estas são reduzidas a trechos da obra Leviatã “como se a primeira tese fosse aquela da guerra generalizada de todos contra todos e a última fosse a defesa do Estado absoluto”. Esta “é uma estratégia do leitor preguiçoso, que combina com manuais e rótulos, mas não com uma atitude filosófica genuína e séria” (FRATESCHI, 2009, p. 11).

Hobbes (1588-1679) foi um matemático e filosofo político inglês, mencionado como precursor do espírito burguês e das políticas imperialistas. Tem suas obras marcadas “sobretudo no terror das guerras que ensanguentaram sua época” (REALE, 1990, p. 485), tais como a Armada Espanhola, a Revolução Gloriosa, a Guerra dos 30 anos, a Batalha de Marston Moor e a Guerra Civil Inglesa.

Esse contexto fez com que Hobbes não tivesse uma visão necessariamente pessimista em relação ao ser humano, mas, ao contrário, ele se constituiu em um autor que prioriza a proteção da vida humana. Toda esta realidade, o fez refletir sobre os pressupostos que constituem a base da construção da sociedade e do Estado. Como destaca Reale (2009), para Hobbes, embora todos os bens sejam relativos, há um bem primeiro e originário constituído pela vida e sua conservação.

Para Hobbes, não há justiça e injustiça naturais, uma vez que não existem valores absolutos porque estes são convenções estabelecidas por nós, logo são cognoscíveis. “Assim, o Estado não é natural, mas sim artificial” (REALE, 2009, p. 498) porque:

A condição em que os homens se encontram naturalmente é uma condição de guerra de todos contra todos. Cada qual tende a se apropriar de tudo aquilo que necessita para sua própria sobrevivência e conservação. E, como cada qual tem direito sobre tudo, não havendo limite imposto pela natureza, nasce então a inevitável predominância de uns sobre os outros (REALE, 2009, p. 498).

É deste entendimento de Hobbes acerca do homem que a expressão “o homem é o lobo do homem” ficou famosa. Embora esta pareça uma frase determinista e pessimista em relação aos seres humanos, ela, de fato, expressa uma constatação do homem em sociedade e para a qual se deve dar solução.

Na verdade, para Hobbes, o homem se torna mal porque precisa recorrer à força e ao engano (virtudes da guerra) para se defender no estado de natureza. Assim, ao invés de assemelharem-se a Deus pela justiça e caridade (virtudes da paz) lançam-se à ferocidade das bestas. Conforme Reale (2009), embora os homens se censurem por esta ferocidade não pode ser vício aquilo que é direito natural, derivado da necessidade da própria conservação da vida que é um bem primário.

Desse modo, nascem as leis da natureza que nada mais são do que a racionalização do egoísmo, as normas que permitem concretizar o instinto de autoconservação. “Uma lei da natureza é um preceito ou uma regra descoberta pela razão, que veta ao homem fazer aquilo que é lesivo à sua vida ou que tolhe os meios de preservá-la” (REALE, 2009, p. 499).

Sob o estado de natureza, cada um de nós tem direito a tudo e, uma vez que todas as coisas são escassas, existe uma constante guerra de todos contra todos. Mas, como se tem também o desejo de acabar com a guerra para poder preservar a própria vida, os homens formam sociedades através de um contrato social.

A partir de Hobbes, pode-se dizer que o homem, ao exercer seu direito fundamental à liberdade é individualista, de modo a colocar em um patamar superior seus próprios interesses em função do que seria melhor para o todo. Esse estado natural parece se acentuar quando passamos a analisar o Estado que deveria agir priorizando o bem comum, mas que, muitas vezes, acaba desvirtuando completamente sua razão de ser. Neste sentido, pior que o estado de natureza é o pouco empenho que temos na nossa própria defesa, o que faz com que precisemos do Estado para fazer um trabalho que poderíamos fazer.

Mas, Hobbes defendia a ideia segundo a qual os homens só podem viver em paz se concordarem em se submeter a um poder absoluto e centralizado. O Estado não pode estar sujeito às leis por ele criadas, pois isso seria infringir sua soberania. A Filosofia hobbesiana apesar de defender o Estado absolutista, é uma filosofia liberal no sentido de que vê o indivíduo como o grande protagonista dos acontecimentos.

Para Hobbes, é necessário que os homens deleguem a um só homem ou a uma assembleia o poder de representá-los. Mas este pacto não é firmado entre os súditos e o soberano (como é para Rousseau), mas sim entre os súditos. “o poder do soberano (ou da assembleia) é indivisível e absoluto. Essa é a mais radical teorização do Estado absolutista, deduzida não do direito divino [...], mas sim do pacto social” (REALE, 2009, p. 500). De acordo com Hobbes, tal sociedade necessita de uma autoridade (monarca ou assembleia) a qual todos os membros devem ceder o suficiente da sua liberdade natural, de forma que possa assegurar a paz interna e a defesa comum. Essa autoridade deveria ser o Leviatã, e seu poder é inquestionável.

Nesta compreensão de Hobbes acerca do homem em sociedade e o Estado, a corrupção envolve a mudança ou esquecimento do papel e especificidades do poder soberano, isto é, a busca constante pela paz e preservação do Estado (TELES, 2012, p. 192). A corrupção é, portanto, o soberano deixar levar-se por caminhos que não aqueles que conduzem o Estado para a paz e segurança dos súditos, pondo em risco sua vida.

Quando o Estado não mais cumpre a função de preservar a vida do súdito, este estaria desobrigado também de viver sob este Estado, afinal a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto e, apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual o Estado é capaz de protegê-los. Porque o direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum. A soberania é a alma do Estado e, uma vez separada do corpo, os membros deixam de receber dela seu movimento (TELES, 2012, p. 190).

Portanto, embora o soberano não seja um contratante, não estando subordinado a obrigações decorrentes de contrato, ele assume um papel no Estado, por conseguinte deve direcionar, comandar e protegê-lo, de modo a garantir a paz e a segurança dos homens. Contudo, como ressalta Teles (2012, p. 192) quando se trata de corrupção para com determinados indivíduos, estes têm o direito de se virar contra o Estado, isto caracteriza uma desobediência e não uma nulidade. A nulidade precisa atingir a totalidade dos contratantes, não apenas indivíduos. Sendo assim, se a corrupção atingir todos os contratantes, ferindo as cláusulas contratuais, o homem pode chegar à nulidade do contrato.

Quando o Estado se desobriga a proteger o súdito, este se desobriga a obedecer ao contrato. E este é o ponto que faz com que Hobbes seja o defensor mais radical do direito à vida que nós encontramos na tradição liberal moderna, porque Hobbes dirá que não é racional exigir que alguém renuncie a seu direito à vida em nome da obediência a um contrato. É contra a razão natural. E, nisso, chegamos aquela ideia de que o Leviatã amedronta, mas quem aterroriza é o Estado de natureza e o amedrontar do Leviatã é para que se siga a regra de defender a paz e a segurança humana.

 

REFERÊNCIAS

FRATESCHI, Yara. Prefácio. In SILVA, Hélio Alexandre da. As paixões humanas em Thomas Hobbes: entre a ciência e a moral, o medo e a esperança [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.

HOBBES, Thomas.  Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. [Trad. J. P. Monteiro e M.B.N. da Silva]. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

REALE, Giovanni. História da Filosofia do Humanismo a Kant. Volume 2.2.ed. São Paulo: Paulus, 1990.

TELES, Idete. O Contrato Social de Thomas Hobbes: Alcances e Limites. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis, 2012.

 

Reflexões sobre a transparência pública em tempos de pandemia

 Reflexões sobre a transparência pública em tempos de pandemia

Márcia Leite Borges

 Acesso à Informação é um elemento importante para a materialização da participação do cidadão na sociedade brasileira, através dele é possível o controle social. Além disso, a informação é um direito fundamental, estando expressa no artigo 19 da Declaração Universal das Nações Unidas (2009) e no artigo 10 da Convenção da Nações Unidas contra a Corrupção (2007). No Brasil, a Constituição Federal de 1988 incorporou o direito ao acesso à informação regulamentado através da Lei nº 2.527/2011.

Nesse contexto de pandemia, a transparência governamental exerce um papel protagonista, principalmente nas ações vinculadas ao Sistema Público de Saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou ainda em janeiro de 2020 que os governos deveriam primar pela transparência nas ações de enfrentamento da COVID-19. Por essa razão, refletir sobre o que é de fato transparência na gestão pública se mostra muito relevante.

É possível ver a transparência governamental como a disponibilização das informações públicas como também a apresentação de ferramentas para a solicitação daquelas não estão disponíveis, tendo em conta que nem toda a informação pública pode ser encontrada na internet. Contudo, não só isso, a transparência se relaciona, também, com a preocupação quanto à qualidade na produção da informação pública. Isso, porque, a informação sem qualidade é inútil ou até mesmo prejudicial quando utilizada para embasar uma tomada de decisão.

O marco legal do Brasil ao acesso à informação é a Lei nº 12.527/2011, denominada de Lei de Acesso à Informação (LAI). Ela regulamenta o direito previsto na Carta Magna de o cidadão solicitar e receber informações de todos os poderes a respeito da “coisa” pública. A LAI é uma das legislações mais avançadas no contexto do acesso à informação sobre a gestão pública à nível mundial, em que pese a existência da Lei Complementar 131/2009 conhecida como a Lei da Transparência, foi a LAI que realmente implantou uma cultura de transparência na ações e finanças públicas no país.

A LAI trouxe modificações importantes com novas regras no que tange a classificação e o sigilo de documentos e informações além especificar os respectivos graus de sigilo. Um dos diferenciais da lei brasileira é a necessidade de os dados e informações serem disponibilização em formato que possibilite a leitura por interfaces computacionais (dados abertos) e não apenas por pessoas. Além disso, fica determinado que os órgãos e entidades devem divulgar proativamente suas informações na internet independentemente de requisição. Esse tipo de transparência é denominado ativa.

A transparência ativa ocorre quando a divulgação dos dados é feita por iniciativa do próprio setor público independente de requerimento. Essa forma de disponibilização além de facilitar o acesso à informação desejada reduz o custo da prestação de informações, além de evitar o acúmulo de pedidos.

Existe também a transparência passiva, onde se criam meios para que o cidadão possa solicitar as informações que não estiverem proativamente disponíveis e que não exijam sigilo por previsão legal. No sentido de possibilitar a transparência passiva a LAI instituiu a criação de Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), responsável pelo atendimento às requisições de informação. Esse serviço deve ser gratuito, não havendo necessidade de justificar o pedido. Contudo, se o órgão negar a informação, este deve justificar a recusa.

Em meio a pandemia, o acesso à informação tem se configurado em um poderoso instrumento de controle social, ou seja, um conjunto de mecanismos que cada sociedade possui para garantir e normatizar o comportamento do ente público, possibilitando a intervenção para uma postura ética aceitável. Nesse sentido, com a necessidade da adoção de medidas emergenciais na contenção da COVID-19, como a flexibilização das regras de licitação e contratações públicas (Lei Federal nº 13.979/2020, complementada pelas Medidas Provisórias nº 926 e 951 de 2020), mais do que nunca o acesso à informação é primordial para o controle social do mal uso e/ou desvio dos recursos públicos.

Mas não é isso que se tem observado, como demonstrou o estudo da Transparência Internacional (2020), apresentado no documento “Ranking de Transparência em Contratações Emergenciais” que analisou os portais de transparência dos estados brasileiros, do Distrito Federal e do Governo Federal quanto aos gastos na contenção da pandemia. Para espanto, o Governo Federal ficou em 26º colocado quanto a transparência em contratações emergenciais, ficando à frente, somente, do estado de Roraima (último colocado no ranking). Isso, demonstra que ainda não há uma preocupação de fato por parte do governo federal em expor, de forma clara e acessível, a distribuição de seus recursos.

Referência bibliográfica:

BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º , no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>.

BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm>

ONU – Organização das Nações Unidas. Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. 2007. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_corruption/Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf>.

ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. UNIC/Rio/005. Janeiro, 2009. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>.

TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Ranking de Transparência em Contratações Emergenciais. 2020. Disponível em: <https://

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A solidariedade italiana com os refugiados da ditadura de Pinochet: reflexões a partir do documentário “Santiago – Itália”

 

A solidariedade italiana com os refugiados da ditadura de Pinochet: reflexões a partir do documentário “Santiago – Itália”

Tiago Leles de Oliveira[1]

O documentário “Santiago, Itália” apresenta a solidariedade italia diante do golpe de Estado ocorrido em 11 de setembro de 1975 no Chile, que foi responsável por derrubar o presidente eleito Salvador Allender, empossando o general Augusto Pinochet, que impôs uma ditadura civil-militar ao Chile, responsável por 40 mil mortes e 3 mil torturados. Nesse sentido, se abordará a partir de uma análise fílmica, os eventos chilenos dos anos 1970 e, principalmente, a ação de acolhimento que a embaixada italiana, em Santiago, realizou para com os refugiados políticos.

Esta análise fílmica se fundamenta por três eixos temáticos, os quais são: a época que o documentário aborda, o período, social, econômico e cultural em que ele foi feito e o tempo da arte, referindo-se ao movimento do cinema ao qual se insere (MOMBELLI, TOMAIM 2015).

Neste documentário contemporâneo, produzido e dirigido por Nanni Moretti, impõe como missão refletir sobre a Itália, aturdida com a chegada da extrema-direita ao poder, que adota uma política mais restritiva à imigração. Nesse sentido, cria-se um contraponto com a solidariedade que a embaixada Italiana ofereceu a quem precisava de refúgio nos 1970, por uma questão de sobrevivência, com a emergência de ditaduras-latino-americanas.

Tendo como enfoque, a narrativa em si, exposta verbalmente, enquanto que as imagens ficaram em segundo plano, num tom mais ilustrativo, os personagens sociais, ou seja, os atores políticos, sobreviventes da ditadura, são entrevistados por Nanni Moretti, responsáveis por recompor, através de fragmentos das memórias, uma imagem do passado (MOMBELLI, TOMAIM, 2015), intercalando com cenas  documentais.

Assim, recontou-se a vitória eleitoral do presidente Salvador Allende pela Unidade Popular (UP), que defendia a “via democrática para o socialismo”, o qual atemorizava a classe dominante e os interesses capitalistas dos Estados Unidos da América (EUA), sob um contexto de Guerra Fria, que foi um confronto entre as superpotências EUA e a União das Repúblicas Socialista Soviética, capitalistas e socialistas, respectivamente, com intuito de conquistar zonas de influência, buscando um freio à pretensão expansionista que ambos possuíam (VIZENTINI, 2004).

Nesse sentido, a reação conservadora por parte da burguesia chilena foi açulada por sabotadores, responsáveis por criar uma situação de escassez artificial, sob o apoio dos EUA, para ocasionar uma instabilidade política e econômica para o mandatário eleito, que havia promovido uma série de estatizações contra os seus interesses, como o do cobre, antes administrado por uma empresa estadunidense.

 Sendo assim, o golpe de Estado promovido pelo general Augusto Pinochet apoiado pelos EUA, foi responsável pela deposição do presidente democrático, através de um bombardeio ao palácio de La Moneda, sede do Governo, que levou a sua morte, e pela instauração de uma ditadura civil-militar, que perseguiu os dissidentes políticos, utilizando o terrorismo de Estado como método, acompanhado da tortura, como demonstraram os entrevistados que sentiram na pele e se tornaram refugiados políticos, forçados ao asilo, separados do seu ambiente familiar, de amigos e de redes sócias estabelecidas (ACNUR, 1997).

Sobretudo, o cerne do documentário trata-se da acolhida de 250 dissidentes políticos promovida pela Embaixada da Itália em Santiago, no Chile, tendo como destaque o testemunho do ex-embaixador Italiano. Nesse sentido, os relatos centram-se no acolhimento que a embaixada oferecia aos opositores à ditadura, que se arriscavam saltando os muros do prédio italiano, em busca de proteção, que era estritamente vigiada pela polícia política de Augusto Pinochet.

            Entretanto, a repressão chilena reconhecia os limites impostos pelo direito internacional público, pois o art. 22 da convenção de Viena estabeleceu sobre Relações Diplomáticas expressamente, que “os locais da missão são invioláveis”. Nesse cenário, a embaixada italiana em Santiago, é tida como uma extensão do território italiano, não sendo permitido o ingresso de agentes da repressão do estado chileno, sem que houvesse a aprovação do chefe da missão, garantindo certo refúgio aos exilados do regime.

            De acordo ex-embaixador Piero De Masi, a delegação diplomática era direcionada a acolher os solicitantes de asilo político, tendo em vista as conexões entre os atores políticos chileno e italiano, no campo progressista; além disso, a Itália era regida por uma coalizão de centro-esquerda: os democratas-cristãos e os esquerdistas, representados por socialistas e comunistas, formavam governo, havendo, na época, uma discussão sobre a possibilidade de construir um “compromisso histórico” na Itália (ÁVILA, 2014), simbolizado pela solidariedade.

Desse modo, a Roma se tornou um importante local da expatriada oposição chilena, após o salvo-conduto que a diplomacia italiana concedeu aos exilados chilenos, para que pudessem ser levados ao aeroporto de Santiago, sem intentos repressivos, para embarcar com destino a Roma ou Milão, estabelecendo-se no exterior.

Portanto, o documentário “Santiago, Itália” apresenta a solidariedade italiana, responsável pelo acolhimento de opositores chilenos, por conta do direcionamento do Governo Italiano de centro-esquerda, reconhecendo a violência política que a junta militar de Augusto Pinochet impunha ao Chile.

 Além disso, é possível estabelecer um contraponto entre a Itália solidária do passado e Itália restritiva do presente, com a extrema-direita, que dificulta o acolhimento a imigrantes ou refugiados, destoando da solidariedade da delegação diplomática, em Santiago, do “compromisso histórico”, com o intuito de instigar uma reflexão cidadã sobre o acolhimento a perseguidos na atualidade.

 

Referências

SANTIAGO, Itália. Direção: Nanni Moretti. Itália. Pandora filmes, 2018, Petra Belas Artes (120min)

MOMBELLI, Nelli Fabiane; TOMAIM, C. D. S. Análise de documentários: apontamentos metodológicos. Lumina, PPGCOM/UFJF, v. 8, n. 2, p. 1-17, jan./2015. Disponível em:

<https://periodicos.ufrj.br/index.php/lumina/article/view/21098/11467> Acesso em: 14 ago. 2020.

ALTO COMISSÁRIO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS (ACNUR). A Situação dos Refugiados no Mundo: Em busca de Soluções. Lisboa: Papelaria Clássica, 1997.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA: CASA CIVIL. Sub chefia para assuntos Jurídicos. Disponível     

em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D56435.htm> Acesso em: 14 ago. 2020.

VIZENTINI, Paulo Fagundes. A Guerra Fria: o desafio socialista à ordem americana. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004, p. 109-157.

ÁVILA, C. F. D. O golpe no Chile e a política internacional (1973): ensaio de interpretação. História, São Paulo, v. 33, n. 1, p. 290-316, fev./2014. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/his/v33n1/14.pdf> Acesso em: 14 ago. 2020

 

 



[1] Estudante de graduação do Curso de Bacharelado em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande. E-mail: tiagoleles100@gmail.com

A Alienação Parental e a Formação de uma Nova Minoria

 

A Alienação Parental e a Formação de uma Nova Minoria

Ana Paula Dupuy Patella[1]

A alienação parental é um fenômeno social decorrente das relações familiares da contemporaneidade. Uma vez resolvido um problema que outrora punha fim às expectativas de felicidade de muitos, consubstanciado na indissolubilidade dos casamentos constituídos, sobreveio um novo problema, decorrente da dissolução das uniões, ou até das relações não estáveis que culminam na gênese de prole em comum, qual seja: a regulamentação e a proteção da relação de parentalidade, esta sim indissolúvel, bem como a proteção dos filhos contra o ataque aos vínculos naturais dela decorrentes.

A necessidade dessa proteção foi reforçada por outro fenômeno social da contemporaneidade, este ainda em fase de consolidação: a reconfiguração dos papéis familiares ante o empoderamento feminino, a atuação da mulher no mercado de trabalho e a divisão de tarefas domésticas igualitariamente entre os componentes da entidade familiar.

Quer dizer, se outrora tinha-se por inequívoco que às mulheres cabia o cuidado do lar e dos filhos, enquanto os homens eram encarregados de garantir meios de subsistência à família, hoje sabe-se que tal divisão de tarefas tende a se dar de forma mais equânime, mediante a contribuição de ambos os genitores tanto com a subsistência familiar quanto com o cuidado da prole.

Assim, vemos uma nova configuração familiar, da qual, de regra, vemos aumentados os vínculos de afeto dos pais pelos filhos, bem como o sentimento de responsabilidade daqueles para com o bem-estar quotidiano destes.

Obviamente, se estamos diante de novas configurações familiares, necessitamos também de novas configurações de desconstituição da entidade familiar, pois uma vez dada a inserção do homem nas atividades quotidianas de cuidados com os filhos durante a união constituída, porque deixariam estes de poder (e dever) cumprir esse papel, em decorrência de eventual rompimento conjugal?

Em outras palavras, se durante a manutenção da relação conjugal o pai divide tanto o custeio das despesas da prole, quanto o cuidado e a atenção diários com a mesma, porque, após o fim do matrimônio, teríamos que voltar para a velha configuração patriarcal de “pai pagador” e “mãe cuidadora”?

A resposta é simples e lógica: não teríamos e não temos (ao menos em tese). Ora, se hoje vemos pais participativos no cuidado dos filhos e podemos proporcionar às crianças e aos adolescentes o contato com ambos os genitores, independentemente da configuração familiar, garantindo-se a eles experiências completas de afeto e de relações de parentalidade, que permite a completude da compreensão e vivência de suas origens, contraria a lógica do razoável pensar em privá-los de tudo isso, em prol do velho costume mantido pela cultura patriarcal.

No entanto, a superação dessa cultura patriarcal ainda é uma demanda e não uma realidade.

A sociedade, como um todo, mantém no seu íntimo um senso comum, quase um instinto, que favorece a reprodução da lógica da “mãe cuidadora” e do “pai pagador” e com isso os indivíduos tendem a naturalizar e até aprovar e apoiar condutas impeditivas da inversão dessa lógica.

Senão, vejamos.

Ao apresentarmos o seguinte questionamento ao cidadão médio: pode a mãe afastar deliberadamente os seus filhos do contato com o pai? A resposta quase unânime (talvez porque politicamente correta) será: não, obviamente.

Agora, se apresentarmos ao mesmo cidadão a seguinte pergunta: pode o pai reivindicar que o seu filho de um ano pernoite em sua residência sem a companhia da mãe? A resposta quase unânime (talvez um pouco mais constrangida) será: mas ele é tão pequeno, não pode ficar longe da mãe.

Ora, mas do pai pode?

O mesmo exercício pode ser refeito com inúmeras perguntas, como por exemplo: pode a mãe optar por mudar o seu domicílio de cidade, levando os filhos consigo para longe do pai? E o pai, pode fazer o mesmo, levando os filhos para local distante da moradia materna? Ou ainda: você acredita que a mãe pode pedir a guarda dos filhos para si, concedendo visitas ao pai sempre que este desejar, desde que combine previamente com ela? E o pai, pode?

Tal exercício demonstra o quanto a cultura patriarcal está enraizada no nosso pensamento e, por isso, inegavelmente, se reflete nos atos, seja de mães, seja de pais, que, ao pôr fim em uma relação conjugal, precisam definir o seu posicionamento e participação na vida dos filhos. As mães tendem a se posicionar como únicas e exclusivas cuidadoras, concedendo aos pais o direito de visitas aos filhos e os pais naturalmente aceitam as restrições impostas porque, no seu íntimo, se sentem socialmente obrigados a responsabilizar-se unicamente pelo custeio da vida dos menores.

Obviamente, não se desconhece a situação de inúmeros pais que justamente por estarem mais enraizados na cultura patriarcal, com o rompimento da relação conjugal, abandonam também o acompanhamento dos filhos, inclusive com boa parcela tentando esquivar-se do dever de pensionamento; ou ainda a situação de milhares de crianças cujos pais se aproveitam desse patriarcalismo para sequer assumir a paternidade dos descendentes.

Acontece que, a superação de um senso que acompanha a nossa socialização há séculos não é instantânea e nem incontroversa. Se a própria participação da mulher no mercado do trabalho assim como todas as outras pautas feministas ainda demandam luta e resistência, não há como pensar que o compartilhamento do cuidado dos filhos entre pais e mães possa estar naturalizado.

O que se identifica, sim, inequivocamente, é uma crescente demanda de pais que manifestam interesse no envolvimento com as questões da prole, reivindicando, inclusive judicialmente, o reconhecimento do direito de convívio e de cuidado para com os seus filhos.

Aliás, direito esse que não pode ser tratado como única e exclusivamente dos pais, porque também se configura em um direito dos próprios filhos, pois os efeitos da ausência paterna são marcantes para todo o desenvolvimento, independentemente da causa dessa ausência. Ainda, em última instância, pode-se dizer que se trata de um direito também da mãe, que não pode ser unicamente responsabilizada pela readaptação de toda a sua vida pessoal, profissional e social em virtude das necessidades da prole.

A despeito de tudo isso, de consubstanciar um direito de todos os componentes da entidade familiar e que, independentemente de qualquer disputa discursiva, só tende a beneficiar o desenvolvimento dos menores envolvidos, a ampliação da convivência e o compartilhamento dos cuidados com os filhos após a dissolução da sociedade conjugal ainda encontra massiva resistência, seja social, seja institucional.

Exatamente por encontrar esse terreno fértil, condicionado pela cultura patriarcal enraizada na sociedade, muitas mulheres, insatisfeitas com o término do casamento ou simplesmente por estarem imersas na cultura do patriarcado, naturalizado pela sua socialização, tendem a negar a possibilidade de compartilhamento dos cuidados dos filhos com os pais, não admitindo o pai e a família paterna como também cuidadores da prole em comum.

Extrapolando esses casos, algumas mães (aí com um maior nível de dolo) ultrapassam a mera ausência de compreensão dos benefícios do compartilhamento quotidiano do cuidado e convívio com os filhos para todos os envolvidos e passam a atacar o vínculo de parentalidade existente com a família paterna, denegrindo a imagem do genitor e sua parentela e dificultando o convívio ou até impedindo qualquer contato.

Contrapondo-se a essa resistência, é crescente o número de pais que, diante da reivindicação feminista por maior participação do homem no lar, passaram a sentir os prazeres da paternidade e consequentemente começaram a não aceitar o rompimento conjugal como um fim da relação também com os filhos, reivindicando a manutenção do seus vínculos com a prole e exigindo o reconhecimento e o respeito a essa relação.

Como se vê, trata-se, talvez pela primeira vez, de homens colocados em uma posição de minoria que necessita lutar social e institucionalmente contra a cultura do patriarcado para ver respeitado o seu direito à igualdade – no caso, igualdade parental.

 



[1] Advogada, Mestre em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: anapaulapatella@gmail.com