quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Uma análise da categoria corrupção em Hobbes

 Uma análise da categoria corrupção em Hobbes

Danieli Veleda Moura

Thomas Hobbes é autor obrigatório para todos aqueles que se interessam por política, embora sua contribuição intelectual seja diminuída porque, frequentemente, estas são reduzidas a trechos da obra Leviatã “como se a primeira tese fosse aquela da guerra generalizada de todos contra todos e a última fosse a defesa do Estado absoluto”. Esta “é uma estratégia do leitor preguiçoso, que combina com manuais e rótulos, mas não com uma atitude filosófica genuína e séria” (FRATESCHI, 2009, p. 11).

Hobbes (1588-1679) foi um matemático e filosofo político inglês, mencionado como precursor do espírito burguês e das políticas imperialistas. Tem suas obras marcadas “sobretudo no terror das guerras que ensanguentaram sua época” (REALE, 1990, p. 485), tais como a Armada Espanhola, a Revolução Gloriosa, a Guerra dos 30 anos, a Batalha de Marston Moor e a Guerra Civil Inglesa.

Esse contexto fez com que Hobbes não tivesse uma visão necessariamente pessimista em relação ao ser humano, mas, ao contrário, ele se constituiu em um autor que prioriza a proteção da vida humana. Toda esta realidade, o fez refletir sobre os pressupostos que constituem a base da construção da sociedade e do Estado. Como destaca Reale (2009), para Hobbes, embora todos os bens sejam relativos, há um bem primeiro e originário constituído pela vida e sua conservação.

Para Hobbes, não há justiça e injustiça naturais, uma vez que não existem valores absolutos porque estes são convenções estabelecidas por nós, logo são cognoscíveis. “Assim, o Estado não é natural, mas sim artificial” (REALE, 2009, p. 498) porque:

A condição em que os homens se encontram naturalmente é uma condição de guerra de todos contra todos. Cada qual tende a se apropriar de tudo aquilo que necessita para sua própria sobrevivência e conservação. E, como cada qual tem direito sobre tudo, não havendo limite imposto pela natureza, nasce então a inevitável predominância de uns sobre os outros (REALE, 2009, p. 498).

É deste entendimento de Hobbes acerca do homem que a expressão “o homem é o lobo do homem” ficou famosa. Embora esta pareça uma frase determinista e pessimista em relação aos seres humanos, ela, de fato, expressa uma constatação do homem em sociedade e para a qual se deve dar solução.

Na verdade, para Hobbes, o homem se torna mal porque precisa recorrer à força e ao engano (virtudes da guerra) para se defender no estado de natureza. Assim, ao invés de assemelharem-se a Deus pela justiça e caridade (virtudes da paz) lançam-se à ferocidade das bestas. Conforme Reale (2009), embora os homens se censurem por esta ferocidade não pode ser vício aquilo que é direito natural, derivado da necessidade da própria conservação da vida que é um bem primário.

Desse modo, nascem as leis da natureza que nada mais são do que a racionalização do egoísmo, as normas que permitem concretizar o instinto de autoconservação. “Uma lei da natureza é um preceito ou uma regra descoberta pela razão, que veta ao homem fazer aquilo que é lesivo à sua vida ou que tolhe os meios de preservá-la” (REALE, 2009, p. 499).

Sob o estado de natureza, cada um de nós tem direito a tudo e, uma vez que todas as coisas são escassas, existe uma constante guerra de todos contra todos. Mas, como se tem também o desejo de acabar com a guerra para poder preservar a própria vida, os homens formam sociedades através de um contrato social.

A partir de Hobbes, pode-se dizer que o homem, ao exercer seu direito fundamental à liberdade é individualista, de modo a colocar em um patamar superior seus próprios interesses em função do que seria melhor para o todo. Esse estado natural parece se acentuar quando passamos a analisar o Estado que deveria agir priorizando o bem comum, mas que, muitas vezes, acaba desvirtuando completamente sua razão de ser. Neste sentido, pior que o estado de natureza é o pouco empenho que temos na nossa própria defesa, o que faz com que precisemos do Estado para fazer um trabalho que poderíamos fazer.

Mas, Hobbes defendia a ideia segundo a qual os homens só podem viver em paz se concordarem em se submeter a um poder absoluto e centralizado. O Estado não pode estar sujeito às leis por ele criadas, pois isso seria infringir sua soberania. A Filosofia hobbesiana apesar de defender o Estado absolutista, é uma filosofia liberal no sentido de que vê o indivíduo como o grande protagonista dos acontecimentos.

Para Hobbes, é necessário que os homens deleguem a um só homem ou a uma assembleia o poder de representá-los. Mas este pacto não é firmado entre os súditos e o soberano (como é para Rousseau), mas sim entre os súditos. “o poder do soberano (ou da assembleia) é indivisível e absoluto. Essa é a mais radical teorização do Estado absolutista, deduzida não do direito divino [...], mas sim do pacto social” (REALE, 2009, p. 500). De acordo com Hobbes, tal sociedade necessita de uma autoridade (monarca ou assembleia) a qual todos os membros devem ceder o suficiente da sua liberdade natural, de forma que possa assegurar a paz interna e a defesa comum. Essa autoridade deveria ser o Leviatã, e seu poder é inquestionável.

Nesta compreensão de Hobbes acerca do homem em sociedade e o Estado, a corrupção envolve a mudança ou esquecimento do papel e especificidades do poder soberano, isto é, a busca constante pela paz e preservação do Estado (TELES, 2012, p. 192). A corrupção é, portanto, o soberano deixar levar-se por caminhos que não aqueles que conduzem o Estado para a paz e segurança dos súditos, pondo em risco sua vida.

Quando o Estado não mais cumpre a função de preservar a vida do súdito, este estaria desobrigado também de viver sob este Estado, afinal a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto e, apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual o Estado é capaz de protegê-los. Porque o direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum. A soberania é a alma do Estado e, uma vez separada do corpo, os membros deixam de receber dela seu movimento (TELES, 2012, p. 190).

Portanto, embora o soberano não seja um contratante, não estando subordinado a obrigações decorrentes de contrato, ele assume um papel no Estado, por conseguinte deve direcionar, comandar e protegê-lo, de modo a garantir a paz e a segurança dos homens. Contudo, como ressalta Teles (2012, p. 192) quando se trata de corrupção para com determinados indivíduos, estes têm o direito de se virar contra o Estado, isto caracteriza uma desobediência e não uma nulidade. A nulidade precisa atingir a totalidade dos contratantes, não apenas indivíduos. Sendo assim, se a corrupção atingir todos os contratantes, ferindo as cláusulas contratuais, o homem pode chegar à nulidade do contrato.

Quando o Estado se desobriga a proteger o súdito, este se desobriga a obedecer ao contrato. E este é o ponto que faz com que Hobbes seja o defensor mais radical do direito à vida que nós encontramos na tradição liberal moderna, porque Hobbes dirá que não é racional exigir que alguém renuncie a seu direito à vida em nome da obediência a um contrato. É contra a razão natural. E, nisso, chegamos aquela ideia de que o Leviatã amedronta, mas quem aterroriza é o Estado de natureza e o amedrontar do Leviatã é para que se siga a regra de defender a paz e a segurança humana.

 

REFERÊNCIAS

FRATESCHI, Yara. Prefácio. In SILVA, Hélio Alexandre da. As paixões humanas em Thomas Hobbes: entre a ciência e a moral, o medo e a esperança [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.

HOBBES, Thomas.  Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. [Trad. J. P. Monteiro e M.B.N. da Silva]. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

REALE, Giovanni. História da Filosofia do Humanismo a Kant. Volume 2.2.ed. São Paulo: Paulus, 1990.

TELES, Idete. O Contrato Social de Thomas Hobbes: Alcances e Limites. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis, 2012.

 

Reflexões sobre a transparência pública em tempos de pandemia

 Reflexões sobre a transparência pública em tempos de pandemia

Márcia Leite Borges

 Acesso à Informação é um elemento importante para a materialização da participação do cidadão na sociedade brasileira, através dele é possível o controle social. Além disso, a informação é um direito fundamental, estando expressa no artigo 19 da Declaração Universal das Nações Unidas (2009) e no artigo 10 da Convenção da Nações Unidas contra a Corrupção (2007). No Brasil, a Constituição Federal de 1988 incorporou o direito ao acesso à informação regulamentado através da Lei nº 2.527/2011.

Nesse contexto de pandemia, a transparência governamental exerce um papel protagonista, principalmente nas ações vinculadas ao Sistema Público de Saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou ainda em janeiro de 2020 que os governos deveriam primar pela transparência nas ações de enfrentamento da COVID-19. Por essa razão, refletir sobre o que é de fato transparência na gestão pública se mostra muito relevante.

É possível ver a transparência governamental como a disponibilização das informações públicas como também a apresentação de ferramentas para a solicitação daquelas não estão disponíveis, tendo em conta que nem toda a informação pública pode ser encontrada na internet. Contudo, não só isso, a transparência se relaciona, também, com a preocupação quanto à qualidade na produção da informação pública. Isso, porque, a informação sem qualidade é inútil ou até mesmo prejudicial quando utilizada para embasar uma tomada de decisão.

O marco legal do Brasil ao acesso à informação é a Lei nº 12.527/2011, denominada de Lei de Acesso à Informação (LAI). Ela regulamenta o direito previsto na Carta Magna de o cidadão solicitar e receber informações de todos os poderes a respeito da “coisa” pública. A LAI é uma das legislações mais avançadas no contexto do acesso à informação sobre a gestão pública à nível mundial, em que pese a existência da Lei Complementar 131/2009 conhecida como a Lei da Transparência, foi a LAI que realmente implantou uma cultura de transparência na ações e finanças públicas no país.

A LAI trouxe modificações importantes com novas regras no que tange a classificação e o sigilo de documentos e informações além especificar os respectivos graus de sigilo. Um dos diferenciais da lei brasileira é a necessidade de os dados e informações serem disponibilização em formato que possibilite a leitura por interfaces computacionais (dados abertos) e não apenas por pessoas. Além disso, fica determinado que os órgãos e entidades devem divulgar proativamente suas informações na internet independentemente de requisição. Esse tipo de transparência é denominado ativa.

A transparência ativa ocorre quando a divulgação dos dados é feita por iniciativa do próprio setor público independente de requerimento. Essa forma de disponibilização além de facilitar o acesso à informação desejada reduz o custo da prestação de informações, além de evitar o acúmulo de pedidos.

Existe também a transparência passiva, onde se criam meios para que o cidadão possa solicitar as informações que não estiverem proativamente disponíveis e que não exijam sigilo por previsão legal. No sentido de possibilitar a transparência passiva a LAI instituiu a criação de Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), responsável pelo atendimento às requisições de informação. Esse serviço deve ser gratuito, não havendo necessidade de justificar o pedido. Contudo, se o órgão negar a informação, este deve justificar a recusa.

Em meio a pandemia, o acesso à informação tem se configurado em um poderoso instrumento de controle social, ou seja, um conjunto de mecanismos que cada sociedade possui para garantir e normatizar o comportamento do ente público, possibilitando a intervenção para uma postura ética aceitável. Nesse sentido, com a necessidade da adoção de medidas emergenciais na contenção da COVID-19, como a flexibilização das regras de licitação e contratações públicas (Lei Federal nº 13.979/2020, complementada pelas Medidas Provisórias nº 926 e 951 de 2020), mais do que nunca o acesso à informação é primordial para o controle social do mal uso e/ou desvio dos recursos públicos.

Mas não é isso que se tem observado, como demonstrou o estudo da Transparência Internacional (2020), apresentado no documento “Ranking de Transparência em Contratações Emergenciais” que analisou os portais de transparência dos estados brasileiros, do Distrito Federal e do Governo Federal quanto aos gastos na contenção da pandemia. Para espanto, o Governo Federal ficou em 26º colocado quanto a transparência em contratações emergenciais, ficando à frente, somente, do estado de Roraima (último colocado no ranking). Isso, demonstra que ainda não há uma preocupação de fato por parte do governo federal em expor, de forma clara e acessível, a distribuição de seus recursos.

Referência bibliográfica:

BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º , no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>.

BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm>

ONU – Organização das Nações Unidas. Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. 2007. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_corruption/Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf>.

ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. UNIC/Rio/005. Janeiro, 2009. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>.

TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Ranking de Transparência em Contratações Emergenciais. 2020. Disponível em: <https://