segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A Crise de Legitimidade dos Prefeitos das Minorias

 

A Crise de Legitimidade dos Prefeitos das Minorias

Ana Paula Dupuy Patella[1]

 A primeira experiência democrática que se tem conhecimento, no Ocidente, remota à Grécia Antiga, mais precisamente à cidade de Atenas, onde todas as decisões eram tomadas coletivamente, depois de discussões públicas, da qual participavam todos os homens, livres, abastados, com mais de 30 anos de idade. Daí surge o conceito – que, portanto, referia-se ao exercício do poder diretamente pelos cidadãos (PASE, 2016).

Suprimidos na Idade Média Ocidental, o conceito e as práticas democráticas são retomados na modernidade, a partir de quando o conceito de cidadão vai se alargando – o que dificulta a implementação da democracia direta, nos moldes daquela vista na Grécia Antiga e faz nascer a ideia de representação. Na democracia representativa, a igualdade e a liberdade dos cidadãos são garantidas mediante o voto. Todos têm o mesmo direito, sendo dada a mesma importância a cada um dos votos (PASE, 2016).

A partir dessa ideia, surgem, nas teorias contemporâneas, duas importantes correntes: “de um lado, predomina uma interpretação cujo cerne considera os procedimentos políticos do regime; e, de outro, uma interpretação que prima pela análise da substância da democracia” (PASE, 2016, p. 16).

Nessa primeira linha, de democracia enquanto procedimento, para Schumpeter (1961, p. 291), um dos expoentes da concepção minimalista da democracia, o regime é apenas um método. Em outras palavras, segundo o autor, democracia é “um certo tipo de arranjo institucional para se alcançarem decisões políticas - legislativas e administrativas -, e, portanto, não pode ser um fim em si mesma, não importando as decisões que produza sob condições históricas dadas”.

Em resumo, de acordo com essa concepção, para se caracterizar um regime como democrático, basta que sejam seguidas as condições procedimentais acima descritas, não relevando, para tanto, “as questões de igualdade social e da responsabilidade pública ou accountability” (PASE, 2016, p. 17).

Por outro lado, a corrente que considera importante a substantividade para caracterizar o regime democrático afirma a necessidade de se “superar o mito que reduz a democracia ao processo técnico, sem examinar o seu verdadeiro conteúdo, que é o resultado da soma de valores éticos e culturais historicamente determinados” (VALDÉS, 2002, p. 36).

Quer dizer, “Esse polo teórico constitui uma interpretação diferenciada e sofisticada na definição de democracia, na medida em que a conceitua através de características substantivas, cujo princípio é a igualdade de condições sociais, intelectuais e culturais” (PASE, 2016, p. 18).

Deste modo, democracia substancial pode ser definida como aquela democracia de conteúdo, que pressupõe a realização dos direitos fundamentais e, mais que isso, a realização dos cidadãos em todas as suas potencialidades. Por óbvio, essa concepção democrática não dispensa a atenção à democracia procedimental, somente pautada no construto do desenho institucional. Ao contrário, esta pode ser encarada como um meio de alcance daquela (BAQUERO, 2003).

Na América Latina, hoje, vemos regimes democráticos que aparentemente atendem o mínimo procedimental exigido para a caracterização da democracia shumpeteriana, tendo em vista que realizam eleições gerais, periódicas, com a legitimação e a efetiva assunção do poder pelos vencedores.

No entanto, não se pode dizer o mesmo do caráter substancial da democracia. Além das sabidas dificuldades que a população enfrenta para ver garantidos os mínimos necessários para a subsistência digna, o procedimento eleitoral não tem garantido uma relevante legitimidade dos eleitos junto aos cidadãos, sobretudo em virtude da descrença na prática política inegável nos estados latino-americanos – que gera ausência de engajamento, participação e consequentemente sentimento de representatividade.

Além desse desencontro entre regras democráticas e sentimento de representatividade subsumível das democracias latinoamerica, há, na legislação brasileira, uma previsão normativa específica que pode estar ocasionando uma crise de legitimidade nos representantes do Executivo Municipal, em colégios eleitorais de menos de duzentos mil eleitores.

Justamente para garantir a legitimidade dos eleitos, na grande maioria das democracias ocidentais, o sistema de eleição dos cargos da majoritária se dá em duas voltas, exigindo-se, assim, que os eleitos atinjam a maioria absoluta dos votos válidos.

No Brasil, a Constituição Federal prevê o sistema em duas voltas para as eleições presidenciais, de governadores e de prefeitos em municípios com mais de duzentos mil eleitores.

Conforme prevê o artigo 29, inciso II, da Constituição Federal, a eleição do Prefeito e Vice-Prefeito, será “realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores” (BRASIL, 1988).

Essa regra do artigo 77 da Constituição Federal, é justamente a que prevê a realização de dois turnos eleitorais para garantir que o eleito alcance a maioria absoluta dos votos (BRASIL, 1988).

Acontece que, com a exceção estabelecida de que municípios com menos de duzentos mil eleitores não terão a realização de segundo turno, ocorre a eleição de representantes para o cargo do executivo municipal, sem que os mesmos tenham atingido a maioria absoluta dos votos válidos.

Ou seja, prefeitos de Municípios de menos de duzentos mil eleitores acabam por ser eleitos mesmo sem ser a escolha da maioria dos eleitores politicamente mobilizados que se deslocaram até a urna para expressar a sua opção sem anular ou votar em branco. Por exemplo, em um Município com quatro candidaturas majoritárias, quando um candidato atinge 20% dos votos válidos, outros dois candidatos atingem 25% dos votos válidos cada um e o quarto candidato obtém 30% dos votos válidos, este último se elege mesmo não sendo a opção de 70% dos eleitores que se mobilizaram e fizeram uma escolha.

Obviamente, tal situação (sobretudo em tempos de crise econômica e política, que ocasionam acirramento dos ânimos e agravamento das necessidades da população em geral) impacta diretamente na legitimidade dos eleitos, que já iniciam os seus mandatos em flagrante insatisfação de mais da metade da população.

Tal desconexão entre a vontade da maioria dos eleitores e o resultado do pleito eleitoral, talvez desconsiderada pela democracia procedimental e principalmente pela previsão constitucional, pode atingir quase a totalidade dos Municípios brasileiros, já que apenas 1,7% (um virgula sete por cento) dos colégios eleitorais brasileiros alcançam mais de duzentos mil eleitores e realizam segundo turno eleitoral (segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral).

Como visto, aquilo que parece ser um problema apenas da concepção substancial da democracia pode revelar um dos vícios procedimentais que contribuem para a crise política e para a descrença popular na mobilização como saída para o enfrentamento dos problemas sociais, porque em quase 99% dos Municípios brasileiros o voto da maioria não é necessariamente acatado.

 Referências Bibliográficas

BAQUERO, Marcelo. Construindo uma outra sociedade no Brasil. O papel do capital social na estruturação da cultura política participativa, Revista Sociologia e Política, Curitiba, n. 21, p. 83-108, nov/2003.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

PASE, Hemerson Luiz. Capital Social e Desenvolvimento: a experiência do Rio Grande do Sul. Pelots: Ed. UFPel, 2016.

SCHUMPETER, Joseph. A. Sociologia do imperialismo. In: SCHUMPETER, J. A. Imperialismo e classes sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.

VALDÉS, Julio. Culture and development for debate. Latin American Perspectives. Issue, 125, vol. 29, n. 4, 2002.



[1] Advogada, Mestre em Direito e Justiça Social e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: anapaulapatella@gmail.com.

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