quarta-feira, 6 de julho de 2022

As Democracias Delegativas: seu passado autoritário e o reflexo da situação menos expressiva no Brasil

Dyaila Polare[1]

Introdução

            Neste trabalho será abordado o que são democracias delegativas e como se realizou o processo de transição do regime autoritário para esse modelo representativo de governo em algumas nações, principalmente as latinas-termo este que usarei como referência aos países da América do Sul que possuem na origem de seus idiomas (sejam eles o português, castelhano e entre outros) a matriz, ou seja, a base, do latim. Outrossim, será argumentado os regimes burocráticoautoritários e como isso reflete no Brasil a partir do século XX, mais precisamente na metade do século até o seu fim. 

O que são Democracias Delegativas? 

            O renomado cientista político e escritor argentino Guillermo O’Donnell dedicou muito tempo de suas pesquisas para se debruçar na transição de governos autoritários (àqueles regimes nos quais o poder é centralizado em uma, ou poucas pessoas, que utiliza deste para controlar a sociedade de maneira rígida, a fim de diminuir a racionalidade dos indivíduos, ou seja, alienálos para que políticas e projetos do autoritário sejam concretizados sem qualquer intervenção, seja popular, seja por parte dos outros integrantes do governo), para modelos representativos de governo, como a democracia (HOBBES, Leviatã). Nesse sentido, O’Donnell ao escrever a obra “Democracia Delegativa?” disserta a existência de vários tipos de governo popular e afirma que seria injusto enquadrá-las em apenas um bloco, visto que as particularidades de cada uma são variáveis de acordo com o tempo histórico situado, a estrutura social de cada país que possui o modelo representativo e seus antecedentes históricos, entretanto, “a democracia delegativa não é alheia à tradição democrática. Na verdade, ela é mais democrática, embora menos liberal, que a democracia representativa” (O’DONNELL, 1991, p.31). 

           Em analogia a isso, segundo o conceito do autor, esta se caracteriza como um modelo de governo representativo no qual o chefe de governo é eleito por voto popular a partir das suas propostas eleitorais na campanha, todavia não é obrigado a cumprir com as expectativas levantadas para a sua candidatura, ou seja, o presidente é autorizado a governar da forma que este preferir, pois foi permitido a ter tal atitude até o final de seu mandado (O’DONNELL, 1991, p.30) e, com isso, a democracia delegativa é individualista no sentido hobbesiano, no qual se pressupõem que os eleitores escolhem, de maneira assertiva, o candidato ideal para comandar o país, independente da filiação ou identidades do eleitor (O’DONNELL, 1991, p.31).

            Contudo, segundo o autor, “ os presidentes foram eleitos na Argentina, na Bolívia, no Brasil, no Equador e no Peru prometendo políticas neokeynesianas expansionistas e muitas outras coisas boas — só para imediatamente, ou logo depois do início de seus mandatos, fazerem o oposto” (1991, p.37) e, assim, é possível realizar questionamentos a respeito da efetiva candidatura do chefe de governo sem enfrentar um impeachment (impugnação do mandato, em inglês, ou seja, é a destituição por meios legais do chefe de Estado-de acordo com as informações do Senado Brasileiro), visto que ao ser eleito a população espera, no mínimo, que algumas de suas promessas eleitorais vigorem no governo. 

            Assim, dentre as estratégias adotadas nas democracias delegativas para que um impeachment não ocorra, são: o cumprimento de alguns projetos importantes (para que o presidente seja lembrado pelos seus feitos) no início e perto do fim do mandato, além de possuir certo carisma em sua personalidade e, logo, este recebe a atenção popular não apenas de um ou alguns partidos, mas de um movimento nacional em sua base política a favor da permanência no governo e, assim, espera-se que a população não se revolte, sejam expectadores passivos e se animem das contribuições do presidente (O’DONNELL, 1991, p.30 e 31). 

            Este tipo de governo pode ser muito prejudicial ao chefe de Estado, visto que ao agir sem muita racionalidade de suas ações, já que este se isola das instituições (o autor separa parte de sua obra para dissertar a visão deste termo: padrões regularizados de interação que são praticados e aceitos regularmente e podem vir a ser concretas, ou seja, instituições formais que se materializam, p.27) políticas, torna-se o único responsável pelos fracassos, como também dos sucessos das políticas implementadas (O’DONNELL, 1991, p.31), logo a vantagem desta democracia é de não ter obrigatoriedade em prestar contas com as outras partes do governo, conceito este que foi nomeado como accountability. Ao realizar um paralelo com as diferenças deste tipo de modelo de governo com a democracia tradicional, nota-se que esta é mais demorada e incremental ao tomar decisões, visto que para uma política pública ou projeto ser aprovado, faz-se necessária a partilha de opiniões afirmativas por todos os setores da câmara dos deputados e senadores para que, assim, sejam efetivadas (O’DONNELL, 1991, p.33). 

            Antecedentes Históricos da Democracia Delegativa e o Reflexo da Situação Menos Expressiva no Brasil ainda embasado na obra do cientista argentino, “uma crise social e econômica profunda é o terreno ideal para liberar as propensões delegativas que podem estar presentes em um dado país" (O’DONNELL, 1991, p.35). Nesse sentido, o escritor aponta os antecedentes que ocasionaram, da metade do século XX para o final, as democracias delegativas especialmente nas nações da América do Sul, visto que este é o recorte do objeto de análise do autor. Dessa forma, Guillermo O’Donnell aborda que a maioria dos países deste espaço geográfico, como também na Europa Oriental, enfrentaram uma crise econômica nas décadas de 1970 e 1980 que foram muito mais agravantes do que no restante do globo terrestre, como na Europa Ocidental. Crise financeira do Estado, alta inflação, dívida pública interna e externa, deteriorização das políticas e serviços sociais (O’DONNELL, 1991, p.34) foram alguma das consequências enfrentadas, devido o embate da guerra fria que estava em vigor a corrida armamentista e espacial entre Estados Unidos e a ex-União Soviética (URSS) nas quais as potências ameaçaram outras nações a se aliarem em um dos lados (capitalista ou socialista) para, assim, as alianças políticas e econômicas se formassem e dividissem o globo em dois polos. 

        Além disso, as destruições provocadas pelas guerras que ocorreram entre as décadas citadas contribuíram tanto para a diminuição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos países vítimas dos conflitos quanto pela perda de recursos materiais, imateriais e humanos. Este cenário aumentou, de maneira alarmante, as desigualdades sociais, problemas de equidade social elementar, de organização e representação política existentes na América Latina que são notados também nos governos autoritários da época, como no Brasil, no qual entre 1964 a 1985 o país enfrentou um golpe de estado dos militares que, então, governaram a nação, por meio de uma ditadura, seguindo os ensinamentos do positivista Augusto Comte, filósofo francês do século XVIII, da ordem e do progresso, termos esses implementados tanto no hino nacional do Brasil, como na bandeira representativa do país. Por analogia a isso, ao fazer um paralelo com as realidades autoritárias de outras nações latinas (aqui se faz referência aos países que possuem o latim como idioma matriz), percebe-se que ao avaliar as repressões, sejam estas de movimento social, liberdade de expressão, aniquilação de culturas e hábitos, violências verbais, físicas, psicológicas e entre outros, o Brasil obteve um regime burocrático-autoritário, no qual O’Donnell diz que o termo “burocrático” detém da ideia de que “o nacional‐populismo de apelo multiclassista se via substituído pela dependência em relação a investimentos externos e aos interesses de corporações multinacionais” (REIS, F.W. :Diálogos com Guillermo O’DONNELL, 2012, p.144), menos violento do que em outras nações, como na Argentina. 

            Todavia, há uma discussão do escritor Fábio Wanderley Reis a respeito dos “paradoxos do êxito” que seria o entendimento destoante de quanto mais repressão um regime autoritário possuir, ao transicionar para o modelo de democracia delegativa a consolidação democrática possui mais vantagens, no entendimento do autor, visto que direitos civis e liberdades da população são mais defendidas e asseguradas pelo novo regime democrático. Assim, é possível analisar que, no Brasil, apesar da nação possuir uma memória “menos cerradamente negativa” (REIS, F.W., 2012, p.150) ao se comparar com o modelo de governo de outros países, este está em desvantagem democrática diante das políticas e direitos públicos. 

            Nesse sentido, este autor descreve que: É preciso fazer democracia real para evitar tragédias, mas por outro a experiência de tragédias seria boa para que se possa fazer democracia real. Se pelo menos a segunda metade dessa proposição circular não comportasse dúvidas... Mas na verdade não está excluída a possibilidade de que uma tragédia menor acabe levando a tragédias maiores. (REIS, F.W., 2012, P.150) 

Considerações Finais 

            Diante da dissertação apresentada, foi possível analisar o que seria uma democracia delegativa diante do conceito do escritor Guillermo O’Donnell e contextualizar com os antecedentes históricos de regimes autoritários nas nações da América Latina, em especial o Brasil, para que, assim, seja possível o entendimento completo da obra do político argentino. 

            Além disso, deixo aqui o questionamento do próprio autor Fábio Wanderley Reis a respeito da transição do regime autoritário para a democracia sem que seja necessária a existência de uma causa extremamente negativa: há uma realidade mais realista e consistente de que “é preciso evitar tragédias, e que não tem cabimento pretender apostar nos efeitos positivos de tragédias coletivas, em tragédias “pequenas” que criariam as condições para que o drama posterior assumisse a forma de um jogo civilizado, republicano e democrático” (REIS, F.W., 2012, p.150). 

Referências Bibliográficas 

O’DONNELL, Guillermo. Democracia delegativa. Revista Novos Estudos. São Paulo, No31, Out. 1991.

PERE, Vitor Placido dos Santos. Autoritarismo: 3 pontos para reconhecer um governo autoritário. 3 pontos para reconhecer um governo autoritário. 2018. Disponível em: https://www.politize.com.br/autoritarismo/. Acesso em: 22 fev. 2022.

REIS, Fábio Wanderley. Diálogos com guillermo o’Donnell. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/XNcBndJk9SFtwBBHhCwQBvm/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 22 fev. 2022.

SENADO, Agência. Impeachment. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/glossariolegislativo/impeachment. Acesso em: 22 fev. 2022.

[1] Graduanda em Relações Internacionais/FURG.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A influência de Jean-Jacques Rosseau

 Julia Kogut Duarte[1]

Jean-Jacques Rousseau foi um estudioso do Iluminismo, que destacava em seus estudos a ligação da desigualdade social com a propriedade privada. Dito isso, foi um dos precursores do socialismo, pois, além da crítica à propriedade privada, também defendia que o povo era soberano. Em outras palavras, defendia que os cidadãos detinham o poder e, em consequência disso, a vontade geral era estabelecida. Outro aspecto abordado, de caráter democrático e justo, era o contrato social legítimo. É possível compreender que, dentro dele, o povo deve escolher seu governante e ter condições de igualdade gerais. Justamente por isso, o representante escolhido deve, além de respeitar, executar as ideias do soberano, criando leis e perpetuando a ideia de liberdade ao segui-las.

Comparado aos outros contratualistas, a divergência de ideias é notória, pois, considerando que Locke é o pai do liberalismo e Hobbes acreditava num Estado autoritário, Rousseau segue um caminho totalmente diferente. Para ele, o primeiro contrato social, feito por poderosos, formaliza que os desempoderados continuarão pobres. Ou seja, a sociedade torna-se infeliz e injusta. Com isso, vê a necessidade da criação de um novo contrato social, o legítimo. Dentro desse contexto, Rousseau julga a propriedade privada como precursora da desigualdade social, tendo em vista que o povo deveria definir a propriedade. Esse fato apenas comprova que um direito só é válido quando todos podem desfrutar das mesmas condições necessárias para garantir sua vida.

Entretanto, a época de instabilidade europeia causa nesses estudiosos a vontade de entender e tentar evitar futuros conflitos. Portanto, a característica em comum é a defesa de um contrato social. Além disso, o direito de liberdade também é visto com grande importância. No estado de natureza não havia regras ou leis, porém, a liberdade sempre foi um direito, inconscientemente, fundamental.

Dito isso, a questão da liberdade para Rousseau é um conjunto de atitudes em decorrência de outras. O corpo soberano elege o governante, que, por sua vez, representa os ideais do povo, e, consequentemente, formula suas próprias leis, através da vontade geral. Ou seja, cumprir a lei é ser livre, tendo em vista que tudo partiu do povo. A justiça social parte desse contexto, com a participação direta de todos na esfera pública seria possível criar uma ordem perfeitamente justa.

Rousseau é considerado um socialista utópico, apresentava visões com ideais positivos, para sociedades futuristas, tendo como principal objetivo mover a sociedade para esse caminho imaginário. Porém, essa corrente foi considerada irrealista, pois não era pensada para a sociedade existente. Dito isso, os estudos do contratualista influenciou alguns nomes importantes para o aprofundamento do socialismo, além de corroborar na criação de novas vertentes. Karl Marx e Friedrich Engels foram os precursores do socialismo científico ou marxismo – correntes teóricas que analisam uma sociedade governada por um governo científico. Em outras palavras, que governa a partir da razão, ao invés da pura vontade. Além disso, fazem uma análise muito mais rigorosa em cima do capitalismo e como ele opera através de opressões.

No entanto, as duas correntes têm um ponto em comum de extrema importância: a desigualdade impulsionada pela propriedade privada. Não há como negar que o Estado aparece para representar os interesses da classe dominante, e, da mesma maneira que Rousseau retrata uma sociedade injusta, Marx e Engels também. Porém, é normal encontrar divergências entre os autores. O marxismo aparece na época da Revolução Industrial, quando os trabalhadores eram extremamente explorados e Rousseau fazia estudos em cima de algo abstrato, o estado de natureza. Logo, os objetivos e a metodologias eram diferentes.

Dito isso, a metodologia usada pelo contratualista era a dedução. Primeiro analisava a sociedade, para então analisar o indivíduo. É um método que parte de uma proposição geral e conclui com uma proposição individual e necessária. Essas proposições partem de premissas já analisadas pelo ser humano. Por outro lado, Marx analisa o indivíduo, que vai do simples ao complexo, do singular ao universal.

Rousseau diz que “uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha que se vender a alguém.”. Ou seja, para a sociedade ser livre e justa, o governo deve representar sua população, ser democrático e dar todo o seu poder ao povo. O responsável por esse papelseria chamado de Legislador, porém, essa tarefa era julgada tão além das possibilidades humanas, que o estudioso quase comparava a figura do representante com um deus. Deveria ser alguém que fosse capaz de mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, além de ter uma existência parcial e moral. Também defendia a ideia de que os governadores não poderiam permanecer muito tempo no poder, para evitar qualquer tipo de corrupção.

Em suma, os estudos de Rousseau alavancaram outros estudos imprescindíveis para o entendimento do capitalismo, a representatividade democrática e a soberania do povo. Além disso, levando em consideração que os temas abordados pelo estudioso estão na literatura desde o século XVIII, se comprova que a ignorância com correntes socialistas é algo cultural.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ROUSSEAU, Jean Jacques (1712-1778). O contrato social. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.


[1]  Graduanda em Relações Internacionais/FURG.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

John Locke e a acumulação de terra através do direito à propriedade

 Darwin Aranda Chuquillanque[1]

O médico e filósofo inglês John Locke (1632-1704) foi um dos precursores do liberalismo econômico e político. Locke também é considerado um contratualista, ou seja, assim como Thomas Hobbes ele também defende a ideia do contrato social entre a sociedade e o Estado. Ademais, é oportuno destacar que Locke também parte do estado de natureza, mas a concepção do estado de natureza difere entre Locke e Hobbes (MELLO, 2001, p. 84). Segundo Mello (2001, p. 84), Locke considerava que num estado de natureza o Homem vivia em paz e harmonia, oposto ao estado de natureza defendido por Hobbes onde a humanidade vivia na opressão, miséria, insegurança e violência, etc. Considerando que o entendimento sobre o estado de natureza difere entre os autores, é fato que as "cláusulas", quer dizer as prioridades do contrato social entre o povo e o Estado, sejam diferentes.

O contrato social do Hobbes priorizava a vida em detrimento das liberdades e propriedade privada. Por sua vez, Locke argumentava que no contrato social as pessoas consolidavam os direitos que tinham no estado de natureza (as pessoas viviam em paz) e ainda mais, as pessoas garantiam o direito à liberdade e propriedade, ou seja, através do contrato social a população outorga poder ao Estado que tem a finalidade de salvaguardar a propriedade privada (MELLO, 2001, p. 86).

Para defender o contrato social e, principalmente, o direito à propriedade, Locke parte do contexto da Inglaterra nesse período, pois esse país enfrentava diferentes crises sociais, guerras, mudanças no sistema econômico, invasões/apropriações, etc. Assim, os detentores de terras (burgueses) sempre corriam o risco de perderem suas propriedades, por exemplo. Portanto, a classe política burguesa, a qual Locke pertencia, precisava de mecanismos que garantissem o controle do poder. Nesse sentido, Locke realiza uma análise sobre a principal finalidade do Estado e defende que "[...] todo governo (Estado) não possui outra finalidade além da conservação da propriedade privada” (MELLO, 2001, p. 87). 

Após essa breve apresentação, o presente texto pretende abordar como o liberalismo defendido por Locke, especialmente a defesa ao direito da propriedade (terra), influenciou na apropriação e concentração de terras no mundo inteiro. 

Ora, como o liberalismo defendido por Locke influenciou na apropriação e concentração de terras no mundo? É oportuno destacar que os conceitos de apropriação e concentração estão incluídos dentro de outro conceito mais amplo conhecido na literatura como Land grabbing[2]. Para tentar responder a pergunta anterior, faz-se necessário, antes de tudo, responder à seguinte pergunta: O capitalismo surge na cidade ou no campo?

Conforme sustenta Wood (1998, p. 13), o capitalismo não surge nas cidades como muitos pensam, mas sim no campo. Segundo o autor supracitado, o capitalismo no campo rompe com os princípios básicos de relação do Homem com a natureza. Com o surgimento desse sistema econômico veio também a expansão dos mercados, assim mesmo os países adaptaram novas formas que permitissem garantir o crescimento econômico. No século XVI, a economia da Inglaterra estava concentrada na agricultura, nessa linha a terra era vista como um produto que poderia gerar muitos lucros através da produção de alimentos e principalmente pelo arrendamento da mesma. Essa produção e concentração de terras estavam nas mãos da burguesia inglesa que controlava o poder político e/ou tinha fortes relações com a monarquia (WOOD, 1998, p.17).

Na verdade, a partir do momento que a terra é vista como um bem produtor de riquezas, o acesso aos produtos gerados no setor agropecuário, como por exemplo, os alimentos, ficam limitados às pessoas que podem pagar por eles. Nas palavras de Denise Elias (2021, p. 5), o alimento é tratado como uma mercadoria, ou "[...] um bem econômico cujo propósito maior é auferir lucro, característica central do capitalismo [...]".

De acordo com Wood (1998, p. 13), no século XVI e XVII o setor agrário inglês foi o mais produtivo da história, isso porque a Inglaterra adaptou novas formas de produtividade nesse setor, também nesse período surge a expressão improvement (melhoramento). O "melhoramento" diz respeito à máxima produção da agricultura utilizando diversas técnicas, ferramentas e insumos de produção, mas para além do sistema produtivo o "melhoramento" preconizava o aumento da concentração e acúmulo de lucro (WOOD, 1998). Ademais o autor destaca que produtividade e lucro eram indissociáveis do "melhoramento", isso contribuiu para o fortalecimento e surgimento da classe agrária capitalista. Idem (1998) assinala que entre os defensores desse novo modelo agrário inglês se destacava John Locke. 

O novo modelo produtivista da agricultura gerou conflitos entre os membros de comunidades rurais e burguesia, pois para os capitalistas as terras comunais atrapalhavam o desenvolvimento do país, nesse sentido, muitas terras "livres" e terras comunais foram extintas em nome do "melhoramento" e, mais que isso, em nome do direito à propriedade (WOOD, 1998, p. 21). O que estamos querendo dizer é que as terras que eram usufruídas pelos membros de uma comunidade, por exemplo, foram apropriadas por agentes que procuravam o "melhoramento" do setor agrícola, tudo isso com anuência do Estado.

Para John Locke, num estado de natureza, a terra era um bem divino outorgado por Deus ao Homem e todos eles tinham direito sobre ela (LOCKE, 1960, p. 13), nesse sentido pode-se dizer que cada Homem deveria possuir uma fração de terra para sua reprodução social. Ora, se Locke defende que a terra é um bem divino para o Homem, como é possível que os homens menos favorecidos sejam excluídos desse presente de Deus? Como foram escolhidos os Homens por Deus para ficar com a terra? Para tentar responder essas perguntas Locke (1960, p. 13) argumenta que Deus deu terra a todos os Homens comuns, mas isso não quer dizer que todos esses têm a capacidade para permanecer com a terra. Nas palavras de Locke, Deus deu o uso da terra: 


"[...] Aos industriosos e racionais (e o trabalho seria seu título), não à fantasia ou cobiça dos briguentos e contenciosos. [...] nas terras que de alguma forma foram trabalhadas (melhoradas) ninguém poderia reclamar, ninguém devia se intrometer no que já foi improvement (melhorado) pelo outro [...]" (LOCKE, 1960, p. 13).


Observa-se que Locke utilizava o improvement (melhoramento) das terras para atribuir o direito à propriedade. De acordo com as colocações de Locke, o trabalho garante o direito à propriedade, pois considera que o homem é dono de seu trabalho (MELLO, 2001, p. 85). Interessante é pensar, que tipo de trabalho Locke está defendendo para considerar que dono da terra é quem faz "melhoramentos"? Se considerarmos que: "Terra e o trabalho não são separados: O trabalho faz parte da vida, a terra continua sendo parte da natureza, a vida e a natureza formam um todo articulado" (POLANYI, 2000, p. 109), pode ser que Locke tenha desconsiderado as diversas relações do homem com a natureza e, principalmente, a função social da terra.

Na verdade, pode ser que Locke não esteja questionando o trabalho propriamente dito, mas sim a utilização da propriedade (terra) como um bem produtivo e lucrativo. Dessa maneira, terras sem "melhoramentos" são consideradas um desperdício de dinheiro, portanto, outorgam o direito de apropriação às pessoas que estão dispostas a "melhorá-las" (WOOD, 1998, p. 22). É evidente que essa apropriação e acumulação de terra, (Land grabbing) não é possível sem o contrato social entre o Homem e o Estado, pois este último, através de suas legislações e leis, facilita o acesso e protege a propriedade privada dos novos donos de terras. 

Finalizando, não se pode atribuir a Locke que milhões de pessoas no mundo inteiro não possuam sequer uma fração de terra para sua moradia, mas também não se pode descartar que suas teorias de liberalismo e direito à propriedade (através do trabalho) contribuíram para a expropriação e acumulação de terras, pois, como foi falado, ele defendia o "melhoramento" da propriedade, e esse "melhoramento" consistia na produtividade e lucro. É óbvio que as condições sociais, econômicas e principalmente a relação do homem com a Natureza difere entre pessoas e povos, portanto não se pode esperar que todo Homem tenha a visão de produtividade e lucro da terra. Tudo parece indicar que o direito à propriedade (terra), que defendia Locke, era limitado para um determinado grupo de pessoas que possuíam os meios e condições necessárias para realizar "melhoramentos" da terra, procurando o tão sonhado "desenvolvimento".

Ao longo do tempo a humanidade evoluiu muito como sociedade, e as contribuições de Locke sobre liberdade e direito à propriedade foram fundamentais para essa evolução. Contudo, em alguns casos, como o do direito à propriedade através do trabalho visando o "melhoramento" da terra defendido por Locke, foi excludente. Nesse sentido, ainda não fomos capazes de encontrar ou aplicar estratégias que possibilitem às pessoas o direito básico que é o acesso a terra e alimentação. Talvez a definição de Maquiavel sobre a natureza do Homem que o considera um ser ávido de lucro e poder, ingrato e egoísta, sejam muito pertinentes na atualidade. E, por fim, não se trata de ser contra ou a favor de adaptar novas tecnologias nos sistemas produtivos, ou ser contra as liberdades de direito de propriedade, se trata de analisar e discutir um sistema econômico estrutural que é excludente e opressor com o Homem e com a Natureza. 


Referências


BORRAS Jr. S; KAY, C; GÓMEZ, S; WILKINSON, J. Acaparamiento de tierras y acumulación capitalista: aspectos clave en América Latina. Revista Interdisciplinaria de Estudios Agrarios Nº 38 - 1er semestre. 2013.


ELIAS, D. O alimento-mercadoria e a fome no Brasil. Boletim Goiano de Geografia. v. 41: .e69103. DOI. 10.5216/BGG.v41.69103. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/bgg/article/view/69103/36944. Acesso em: 20 set. 2021.


LOCKE, J. Two treatises of government. Disponível em: www.gutenberg.org/files/7370/7370-h/7370-h.htm. Aceso em. 21/09/2021.


MELLO, L. I. A. John Locke e o individualismo liberal. In.WEFFOR, F. C (Org.). Os clássicos da política. São Paulo; Editora Ática, 2001, 1 volume.


POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro; Campus, 1980, 7ª edição.


WOOD, E. M. As origens agrárias do capitalismo. Monthly Review. v, 50. n, 3. 1998

[1]  Graduando em Relações Internacionais/FURG e Doutorando em Desenvolvimento Rural/UFRGS. E-mail: darandadarwin@ufrgs.br
[2] Ações de captura e controle sobre extensões relativamente vastas de terras e outros recursos, através de uma variedade de mecanismos e modalidades, envolvendo capital de grande escala que, atuando em modalidades extrativistas, seja respondendo a fins nacionais ou internacionais, busca responder à convergência da crise alimentar, energética e financeira, as necessidades de mitigação das alterações climáticas e da procura de recursos pelos novos núcleos de capital global (Borras et al., 2013, p. 82).

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

OS FEDERALISTAS

 Amanda de Oliveira [1]

Após diversas tentativas equivocadas de unificações por inúmeros pensadores clássicos, cria-se assim, uma nova ideia de se tornar possível determinada centralização partindo dos principais pensadores da economia e política Norte Americana, sendo eles: James Madison (1751 – 1836), Alexandre Hamilton (1757 – 1804) e John Jay (1745 – 1829), visto que o país estava mergulhado em uma onda de grandes transformações na década de 80. Deste modo, publicam-se artigos de federação, trazendo um parecer de que, para a formação dos Estados, necessitava-se primeiramente a sua independência, ideal denominado nos textos como uma República Federativa.

Primordialmente, é importante compreender quem foram os Federalistas e quais as suas considerações para a publicação desses artigos. James Madison, antes de tudo, é considerado o “pai” da Constituição dos Estados Unidos, devido ao seu grande papel durante a formação e introdução dela, juntamente com a criação das 10 Emendas da Declaração dos Direitos de seu país no Primeiro Congresso dos EUA, feito realizado no ano de 1789. Nascido em Virgínia em março de 1751, mudou-se para cerca de 350 quilômetros de sua cidade natal, completou seus estudos no The College of New Jersey, focado principalmente em áreas voltadas para a sociedade, como ciência e a filosofia.

Após sua virtuosa vida acadêmica, Madison chega ao seu auge, tornando-se em 1809 o quarto Presidente dos Estados Unidos e dando continuidade ao seu mandato na eleição seguinte. Entretanto, teve grande importância em outros departamentos como em negociações internacionais e sendo secretário de Estado durante o governo de Thomas Jefferson, tendo como base o pensamento democrático no seu poder.

O Congresso não fará nenhuma lei respeitando o estabelecimento da religião, ou proibindo o seu livre exercício; ou restringir a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de fazer uma petição ao governo pedindo a reparação de suas queixas (Primeira Emenda Constitucional dos EUA, MADISON,1791).

Contudo, Alexander Hamilton possuiu uma carreira um pouco distinta, nascido em Antilhas, na América Central, passou grande parte da sua infância em Charlestown, capital da Ilha de Nevis. Após anos, mergulhado em assuntos militares de seu país, Hamilton assumiu o cargo de capitão de artilharia durante a Guerra da Independência, subindo para Tenente-Coronel e alcançando o posto de ajudante de campo com a ajuda de George Washington, que acabou se tornando o primeiro Presidente dos Estados Unidos e, dessa forma, frequentemente evoluindo dentro de seu exército.

Após a Guerra da Independência, tendo como causa a luta por uma maior liberdade econômica e política de suas 13 colônias, Alexander estuda direito e exerce a sua profissão em New York. Com a sua entrada para o Congresso em 1782, ele esteve sempre relacionado a ideias opostas dos demais, mantendo uma postura firme de seu pensamento, havendo grandes discussões sobre a sua vida política, como por exemplo, em um dos seus discursos propondo um formato de “Presidente para a Vida”, com um conceito de eleição, cumprindo mandatos vitalícios e sendo sujeitos à expulsão caso houvesse corrupção ou abuso de poder, sendo visto pelos seus companheiros como um contribuinte para a Monarquia. Entretanto, as suas falas voltadas ao bem da sociedade nem sempre foi vista como algo verdadeiro, pois sua família o acusou diversas vezes de ser um homem que possuía escravos, dizendo que ele não só escravizou pessoas, como a contribuição para este crime foi essencial para a sua identidade, tanto pessoal quanto profissional. (SERFILIPPI, 2020, pág. 4)

Ademais, John Jay, filho de um comerciante nova-iorquino, se graduou na Universidade de Columbia, em sua cidade natal, se tornando futuramente um importante diplomata durante a dominação inglesa, conseguindo negociar e contribuir para a assinatura do Tratado de Paris, acabando com a Guerra Revolucionária Americana e reconhecendo a Independência dele. “É muito verdade, por mais vergonhoso que seja para a natureza humana, que as nações em geral farão a guerra sempre que tiverem a perspectiva de conseguir algo com ela” (JAY, 1788). Sendo o principal autor da Constituição de seu Estado no ano de 1777, estabelecendo sua estrutura de governo com grande influência para a Constituição federal. O federalista foi, pelo cargo de ministro das Relações Exteriores, o fundamental percursor do Tratado de Paz com a antiga Grã-Bretanha, alcançando o poder como o primeiro Presidente da Suprema Corte dos EUA, retirando-se da vida pública anos depois.

Diante os apresentados, ambos norte-americanos, juntos publicam artigos de extrema importância para o pensamento político e econômico, escritos entre maio e setembro do ano de 1787, período no qual seu país, Estados Unidos, passava por grandes transformações, abalando ainda mais as estruturas estatais após a criação de seus materiais redigidos para a sua federação. Naquele momento, a Constituição era desprovida de autoridade e força de lei, pois o Estado não necessitava cumprir as ordens demandadas, sendo um ponto extremamente fundamental para as suas discussões sobre os países e como eles deveriam se estabelecer diante as suas independências, por meio de suas Repúblicas Federativas, compostas por governos em diversas regiões, se unificando sob somente um governo federal. Essa medida seria possível gerando uma maior liberdade entre os constituintes, dando origem a novos países.

O principal motivo para a criação e aplicação desses artigos feitos por Madison, Hamilton e Jay, foi basicamente a tentativa de unificar e romper com a tradição inglesa, podendo dessa forma, sistematizar sua própria economia e política, de modo que fosse de acordo com os seus pensamentos. Após o êxito de suas vontades, ambos propõem um Estado Democrático, com autonomia entre países e governos, acabando com a ideia de cidadãos virtuosos como dito por Maquiavel. “Os Estados que nascem subitamente – como todas as outras coisas da natureza que nascem e crescem depressa – não podem ter raízes e ramificações, de modo que sucumbem na primeira tempestade” (MAQUIAVEL, 1513, pág.28).

Todavia, os artigos por si só não garantiam o cumprimento de determinadas leis, dando origem a dois formatos de relações entre Governo-Estado e Estado-Governo. Alexander Hamilton defendia um ideal denominado como pacto federal, regido por regras constitucionais, dividindo a responsabilidade entre os Estados, com países desmilitarizados evitando o rompimento com os demais, pois para ele, se certa Nação obtivesse uma força militar maior do que as outras, poderia acabar com os seus concorrentes e tornar-se uma maior potência.

“Mas, como se demonstrou, se a União for essencial à segurança do povo da América contra o perigo externo; se for essencial para sua segurança contra disputas e guerras entre os diferentes Estados; se for essencial para protegê-los contra essas facções violentas e opressivas que tornam amargas as bênçãos da liberdade e contra aquelas instituições militares que envenenarão gradualmente sua própria fonte […] se a União for essencial para a felicidade do povo na América, não é absurdo lançar […]” (OS FEDERALISTAS, 1781, pág. 321).

Com este pensamento, se aproximam fortemente de Hobbes, no qual dizia que o homem era não só realista, mas também pessimista, sedentos por dinheiro e honra, pois para ele, os homens só poderiam conviver de forma uniforme se concordassem em submeter-se a um poder absoluto. (HOBBES, 1651) O homem tende a tirania, então é necessário controlá-los por meio de três poderes conhecidos atualmente em nossa sociedade. O Poder Executivo, para Os Federalistas, se tratava da divisão mais forte dentre o Estado, com o intuito de administrar os interesses públicos e governar o povo. O Poder Legislativo tinha como função a criação de leis para toda a população, seguido do Poder Judiciário, com menos força e dominância perante os demais, com foco em “frear” os homens e garantir a corte como uma classe superior, na qual ainda é possível identificar em nossa Democracia, visto que, ainda possuímos uma classe em que se sobressai relacionada aos menos favorecidos.

Por essa razão, propõem a Constituição do Senado, como uma estrutura responsável por revisar as decisões do Congresso, frisando o pensamento de Os Federalistas em desacreditar que o homem seja virtuoso, precisando de todas as formas, proteger a liberdade. Afirma-se assim, a preocupação em produzir uma coordenação constituída por diferentes interesses, demonstrando o pacto social na Constituição americana e em diversos outros países, tendo influência desses autores na política brasileira, dando origem a Democracia atual.

 

Referências bibliográficas:

MADISON, James. Declaração dos Direitos dos Estados Unidos. National Archives, 1789.

MADISON, James. HAMILTON, Alexander. JAY, John. The Federalist Paper. Penguin Group, 1988.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. República Florentina, 1532. HOBBES, Thomas. O Leviatã. Abril de 1651

SERFILIPPI, Jessie. Como uma coisa odiosa e imoral: A história oculta de Alexander Hamilton como um escravagista. Nova York, 2020.

[1]Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG.