terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

As palavras tem força



As palavras têm força
Adriana Soares Dutra
Hemerson Luiz Pase

          Umberto Eco disse uma vez que quando a humanidade perde uma língua, perde algo que nem conhece. O brilhante autor se referia a possibilidade do extermínio de tribos africanas fazer desaparecer as pessoas e a sua língua. As palavras, os jargões, as gírias têm muita força pois traduzem coisas, materializam ideias, valores e concepções de mundo. Existem áreas onde isso é ainda mais evidente, como nas políticas públicas. Quanta disputa retórica e discursiva ocorre entre uma eleição e a efetivação de uma política pública? E depois, quanta discussão ocorre sobre seus resultados, sobre sua eficiência, eficácia e efetividade, sobre o público ao qual a política se destina?
          A concepção que afirma o papel das ideias, dos valores e dos argumentos nas políticas públicas é sistematicamente utilizada para explicar resultados, seja acionando pesquisadores renomados, seja tencionando a partir de valores morais religiosos.
          Não obstante, existem algumas áreas de políticas públicas onde essas disputas pela 'palavra' se dão a partir da tentativa e erro em oposição ao tencionamento de valores e, muitas vezes, até de pesquisas, essa área é o meio ambiente. Como prever ou antecipar os resultados de uma ação de preservação ambiental sem que um desastre irrompa, nos afrontando? Essa é uma das grandes lições que os acontecimentos em Mariana (2015) e em Brumadinho (2019) insistem em fazer notar. Qual o limite que uma empresa tem para explorar a natureza? Qual o limite da natureza? Até aonde ela pode suportar?
      Considerando que a história possibilita o aprendizado perguntamos, será possível ainda negligenciar o investimento em prevenção e preparação? Se o risco não aparece, ele não está presente na disputa discursiva e retórica, se não está presente não pode ser antecipado, se não pode ser antecipado nos destrói.
Quando o desastre emerge e já não se torna possível adotar a estratégia de silenciamento, normalmente a preferida dos representantes dos segmentos dominantes, observa-se uma cuidadosa seleção sobre o que e como dizer.
A evidência da importância das palavras é perfeitamente observável na disputa por termos como: tragédia x desastre, desastre natural x desastre ambiental, zonas de atenção x áreas de risco, acidente industrial x crime ambiental. As empresas que exploram o meio ambiente diretamente como grandes hidrelétricas, mineradoras, petrolíferas, do setor do agronegócio, todas disputam diuturnamente as palavras e seu conteúdo.
Este é o grande problema: o risco nunca é avaliado e as medidas protetivas não são perfeitamente adotadas até a emergência do desastre. Para justificar este posicionamento, o qual envolve aspectos econômicos e políticos, a produção do discurso se apresenta de maneira bastante eficaz, produzindo consensos e apaziguando ânimos. Sempre é possível ir mais longe, já que não há evidência da tragédia. Os casos de Mariana e de Brumadinho, ambos envolvendo a empresa Vale, mostram que depois do impacto aparecem evidências de que existiam riscos que foram relativizados discursivamente.
Em reportagem do Jornal Folha de São Paulo, de 13 de fevereiro de 2019, a empresa nega que tenha havido apontamento de risco de rompimento iminente da Barragem de Brumadinho por parte dos técnicos que desenvolveram o estudo. Optaram por falar em "zonas de atenção" e "cenários hipotéticos", distanciando-se do desastre que se produzia em ritmo acelerado. A escolha dos termos revela, em última instância, a ausência de medidas que poderiam ser tomadas para a proteção das pessoas, incluindo os trabalhadores da própria Vale, caso o risco fosse realmente enfrentado.
Em uma outra perspectiva, o que ocorreu em Brumadinho, três anos depois de Mariana, não pode ser compreendido como incidente, acidente ou eventualidade. Constituem-se em crimes ambientais, produtores de verdadeiros desastres, com consequências nefastas, especialmente para os segmentos mais pobres da população. Sustentados por decisões pautadas em interesses políticos e econômicos, revelam a sobreposição do lucro em detrimento do valor da vida e a hegemonia do desenvolvimento neoextrativista, a partir do qual não há limites para a exploração dos recursos naturais, como defende o professor Henri Acselrad. Compreender esta lógica é também disputar o discurso, o poder das palavras e suas intenções, porém sob a ótica dos atingidos.