quarta-feira, 6 de julho de 2022

As Democracias Delegativas: seu passado autoritário e o reflexo da situação menos expressiva no Brasil

Dyaila Polare[1]

Introdução

            Neste trabalho será abordado o que são democracias delegativas e como se realizou o processo de transição do regime autoritário para esse modelo representativo de governo em algumas nações, principalmente as latinas-termo este que usarei como referência aos países da América do Sul que possuem na origem de seus idiomas (sejam eles o português, castelhano e entre outros) a matriz, ou seja, a base, do latim. Outrossim, será argumentado os regimes burocráticoautoritários e como isso reflete no Brasil a partir do século XX, mais precisamente na metade do século até o seu fim. 

O que são Democracias Delegativas? 

            O renomado cientista político e escritor argentino Guillermo O’Donnell dedicou muito tempo de suas pesquisas para se debruçar na transição de governos autoritários (àqueles regimes nos quais o poder é centralizado em uma, ou poucas pessoas, que utiliza deste para controlar a sociedade de maneira rígida, a fim de diminuir a racionalidade dos indivíduos, ou seja, alienálos para que políticas e projetos do autoritário sejam concretizados sem qualquer intervenção, seja popular, seja por parte dos outros integrantes do governo), para modelos representativos de governo, como a democracia (HOBBES, Leviatã). Nesse sentido, O’Donnell ao escrever a obra “Democracia Delegativa?” disserta a existência de vários tipos de governo popular e afirma que seria injusto enquadrá-las em apenas um bloco, visto que as particularidades de cada uma são variáveis de acordo com o tempo histórico situado, a estrutura social de cada país que possui o modelo representativo e seus antecedentes históricos, entretanto, “a democracia delegativa não é alheia à tradição democrática. Na verdade, ela é mais democrática, embora menos liberal, que a democracia representativa” (O’DONNELL, 1991, p.31). 

           Em analogia a isso, segundo o conceito do autor, esta se caracteriza como um modelo de governo representativo no qual o chefe de governo é eleito por voto popular a partir das suas propostas eleitorais na campanha, todavia não é obrigado a cumprir com as expectativas levantadas para a sua candidatura, ou seja, o presidente é autorizado a governar da forma que este preferir, pois foi permitido a ter tal atitude até o final de seu mandado (O’DONNELL, 1991, p.30) e, com isso, a democracia delegativa é individualista no sentido hobbesiano, no qual se pressupõem que os eleitores escolhem, de maneira assertiva, o candidato ideal para comandar o país, independente da filiação ou identidades do eleitor (O’DONNELL, 1991, p.31).

            Contudo, segundo o autor, “ os presidentes foram eleitos na Argentina, na Bolívia, no Brasil, no Equador e no Peru prometendo políticas neokeynesianas expansionistas e muitas outras coisas boas — só para imediatamente, ou logo depois do início de seus mandatos, fazerem o oposto” (1991, p.37) e, assim, é possível realizar questionamentos a respeito da efetiva candidatura do chefe de governo sem enfrentar um impeachment (impugnação do mandato, em inglês, ou seja, é a destituição por meios legais do chefe de Estado-de acordo com as informações do Senado Brasileiro), visto que ao ser eleito a população espera, no mínimo, que algumas de suas promessas eleitorais vigorem no governo. 

            Assim, dentre as estratégias adotadas nas democracias delegativas para que um impeachment não ocorra, são: o cumprimento de alguns projetos importantes (para que o presidente seja lembrado pelos seus feitos) no início e perto do fim do mandato, além de possuir certo carisma em sua personalidade e, logo, este recebe a atenção popular não apenas de um ou alguns partidos, mas de um movimento nacional em sua base política a favor da permanência no governo e, assim, espera-se que a população não se revolte, sejam expectadores passivos e se animem das contribuições do presidente (O’DONNELL, 1991, p.30 e 31). 

            Este tipo de governo pode ser muito prejudicial ao chefe de Estado, visto que ao agir sem muita racionalidade de suas ações, já que este se isola das instituições (o autor separa parte de sua obra para dissertar a visão deste termo: padrões regularizados de interação que são praticados e aceitos regularmente e podem vir a ser concretas, ou seja, instituições formais que se materializam, p.27) políticas, torna-se o único responsável pelos fracassos, como também dos sucessos das políticas implementadas (O’DONNELL, 1991, p.31), logo a vantagem desta democracia é de não ter obrigatoriedade em prestar contas com as outras partes do governo, conceito este que foi nomeado como accountability. Ao realizar um paralelo com as diferenças deste tipo de modelo de governo com a democracia tradicional, nota-se que esta é mais demorada e incremental ao tomar decisões, visto que para uma política pública ou projeto ser aprovado, faz-se necessária a partilha de opiniões afirmativas por todos os setores da câmara dos deputados e senadores para que, assim, sejam efetivadas (O’DONNELL, 1991, p.33). 

            Antecedentes Históricos da Democracia Delegativa e o Reflexo da Situação Menos Expressiva no Brasil ainda embasado na obra do cientista argentino, “uma crise social e econômica profunda é o terreno ideal para liberar as propensões delegativas que podem estar presentes em um dado país" (O’DONNELL, 1991, p.35). Nesse sentido, o escritor aponta os antecedentes que ocasionaram, da metade do século XX para o final, as democracias delegativas especialmente nas nações da América do Sul, visto que este é o recorte do objeto de análise do autor. Dessa forma, Guillermo O’Donnell aborda que a maioria dos países deste espaço geográfico, como também na Europa Oriental, enfrentaram uma crise econômica nas décadas de 1970 e 1980 que foram muito mais agravantes do que no restante do globo terrestre, como na Europa Ocidental. Crise financeira do Estado, alta inflação, dívida pública interna e externa, deteriorização das políticas e serviços sociais (O’DONNELL, 1991, p.34) foram alguma das consequências enfrentadas, devido o embate da guerra fria que estava em vigor a corrida armamentista e espacial entre Estados Unidos e a ex-União Soviética (URSS) nas quais as potências ameaçaram outras nações a se aliarem em um dos lados (capitalista ou socialista) para, assim, as alianças políticas e econômicas se formassem e dividissem o globo em dois polos. 

        Além disso, as destruições provocadas pelas guerras que ocorreram entre as décadas citadas contribuíram tanto para a diminuição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos países vítimas dos conflitos quanto pela perda de recursos materiais, imateriais e humanos. Este cenário aumentou, de maneira alarmante, as desigualdades sociais, problemas de equidade social elementar, de organização e representação política existentes na América Latina que são notados também nos governos autoritários da época, como no Brasil, no qual entre 1964 a 1985 o país enfrentou um golpe de estado dos militares que, então, governaram a nação, por meio de uma ditadura, seguindo os ensinamentos do positivista Augusto Comte, filósofo francês do século XVIII, da ordem e do progresso, termos esses implementados tanto no hino nacional do Brasil, como na bandeira representativa do país. Por analogia a isso, ao fazer um paralelo com as realidades autoritárias de outras nações latinas (aqui se faz referência aos países que possuem o latim como idioma matriz), percebe-se que ao avaliar as repressões, sejam estas de movimento social, liberdade de expressão, aniquilação de culturas e hábitos, violências verbais, físicas, psicológicas e entre outros, o Brasil obteve um regime burocrático-autoritário, no qual O’Donnell diz que o termo “burocrático” detém da ideia de que “o nacional‐populismo de apelo multiclassista se via substituído pela dependência em relação a investimentos externos e aos interesses de corporações multinacionais” (REIS, F.W. :Diálogos com Guillermo O’DONNELL, 2012, p.144), menos violento do que em outras nações, como na Argentina. 

            Todavia, há uma discussão do escritor Fábio Wanderley Reis a respeito dos “paradoxos do êxito” que seria o entendimento destoante de quanto mais repressão um regime autoritário possuir, ao transicionar para o modelo de democracia delegativa a consolidação democrática possui mais vantagens, no entendimento do autor, visto que direitos civis e liberdades da população são mais defendidas e asseguradas pelo novo regime democrático. Assim, é possível analisar que, no Brasil, apesar da nação possuir uma memória “menos cerradamente negativa” (REIS, F.W., 2012, p.150) ao se comparar com o modelo de governo de outros países, este está em desvantagem democrática diante das políticas e direitos públicos. 

            Nesse sentido, este autor descreve que: É preciso fazer democracia real para evitar tragédias, mas por outro a experiência de tragédias seria boa para que se possa fazer democracia real. Se pelo menos a segunda metade dessa proposição circular não comportasse dúvidas... Mas na verdade não está excluída a possibilidade de que uma tragédia menor acabe levando a tragédias maiores. (REIS, F.W., 2012, P.150) 

Considerações Finais 

            Diante da dissertação apresentada, foi possível analisar o que seria uma democracia delegativa diante do conceito do escritor Guillermo O’Donnell e contextualizar com os antecedentes históricos de regimes autoritários nas nações da América Latina, em especial o Brasil, para que, assim, seja possível o entendimento completo da obra do político argentino. 

            Além disso, deixo aqui o questionamento do próprio autor Fábio Wanderley Reis a respeito da transição do regime autoritário para a democracia sem que seja necessária a existência de uma causa extremamente negativa: há uma realidade mais realista e consistente de que “é preciso evitar tragédias, e que não tem cabimento pretender apostar nos efeitos positivos de tragédias coletivas, em tragédias “pequenas” que criariam as condições para que o drama posterior assumisse a forma de um jogo civilizado, republicano e democrático” (REIS, F.W., 2012, p.150). 

Referências Bibliográficas 

O’DONNELL, Guillermo. Democracia delegativa. Revista Novos Estudos. São Paulo, No31, Out. 1991.

PERE, Vitor Placido dos Santos. Autoritarismo: 3 pontos para reconhecer um governo autoritário. 3 pontos para reconhecer um governo autoritário. 2018. Disponível em: https://www.politize.com.br/autoritarismo/. Acesso em: 22 fev. 2022.

REIS, Fábio Wanderley. Diálogos com guillermo o’Donnell. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/XNcBndJk9SFtwBBHhCwQBvm/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 22 fev. 2022.

SENADO, Agência. Impeachment. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/glossariolegislativo/impeachment. Acesso em: 22 fev. 2022.

[1] Graduanda em Relações Internacionais/FURG.