terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A influência de Jean-Jacques Rosseau

 Julia Kogut Duarte[1]

Jean-Jacques Rousseau foi um estudioso do Iluminismo, que destacava em seus estudos a ligação da desigualdade social com a propriedade privada. Dito isso, foi um dos precursores do socialismo, pois, além da crítica à propriedade privada, também defendia que o povo era soberano. Em outras palavras, defendia que os cidadãos detinham o poder e, em consequência disso, a vontade geral era estabelecida. Outro aspecto abordado, de caráter democrático e justo, era o contrato social legítimo. É possível compreender que, dentro dele, o povo deve escolher seu governante e ter condições de igualdade gerais. Justamente por isso, o representante escolhido deve, além de respeitar, executar as ideias do soberano, criando leis e perpetuando a ideia de liberdade ao segui-las.

Comparado aos outros contratualistas, a divergência de ideias é notória, pois, considerando que Locke é o pai do liberalismo e Hobbes acreditava num Estado autoritário, Rousseau segue um caminho totalmente diferente. Para ele, o primeiro contrato social, feito por poderosos, formaliza que os desempoderados continuarão pobres. Ou seja, a sociedade torna-se infeliz e injusta. Com isso, vê a necessidade da criação de um novo contrato social, o legítimo. Dentro desse contexto, Rousseau julga a propriedade privada como precursora da desigualdade social, tendo em vista que o povo deveria definir a propriedade. Esse fato apenas comprova que um direito só é válido quando todos podem desfrutar das mesmas condições necessárias para garantir sua vida.

Entretanto, a época de instabilidade europeia causa nesses estudiosos a vontade de entender e tentar evitar futuros conflitos. Portanto, a característica em comum é a defesa de um contrato social. Além disso, o direito de liberdade também é visto com grande importância. No estado de natureza não havia regras ou leis, porém, a liberdade sempre foi um direito, inconscientemente, fundamental.

Dito isso, a questão da liberdade para Rousseau é um conjunto de atitudes em decorrência de outras. O corpo soberano elege o governante, que, por sua vez, representa os ideais do povo, e, consequentemente, formula suas próprias leis, através da vontade geral. Ou seja, cumprir a lei é ser livre, tendo em vista que tudo partiu do povo. A justiça social parte desse contexto, com a participação direta de todos na esfera pública seria possível criar uma ordem perfeitamente justa.

Rousseau é considerado um socialista utópico, apresentava visões com ideais positivos, para sociedades futuristas, tendo como principal objetivo mover a sociedade para esse caminho imaginário. Porém, essa corrente foi considerada irrealista, pois não era pensada para a sociedade existente. Dito isso, os estudos do contratualista influenciou alguns nomes importantes para o aprofundamento do socialismo, além de corroborar na criação de novas vertentes. Karl Marx e Friedrich Engels foram os precursores do socialismo científico ou marxismo – correntes teóricas que analisam uma sociedade governada por um governo científico. Em outras palavras, que governa a partir da razão, ao invés da pura vontade. Além disso, fazem uma análise muito mais rigorosa em cima do capitalismo e como ele opera através de opressões.

No entanto, as duas correntes têm um ponto em comum de extrema importância: a desigualdade impulsionada pela propriedade privada. Não há como negar que o Estado aparece para representar os interesses da classe dominante, e, da mesma maneira que Rousseau retrata uma sociedade injusta, Marx e Engels também. Porém, é normal encontrar divergências entre os autores. O marxismo aparece na época da Revolução Industrial, quando os trabalhadores eram extremamente explorados e Rousseau fazia estudos em cima de algo abstrato, o estado de natureza. Logo, os objetivos e a metodologias eram diferentes.

Dito isso, a metodologia usada pelo contratualista era a dedução. Primeiro analisava a sociedade, para então analisar o indivíduo. É um método que parte de uma proposição geral e conclui com uma proposição individual e necessária. Essas proposições partem de premissas já analisadas pelo ser humano. Por outro lado, Marx analisa o indivíduo, que vai do simples ao complexo, do singular ao universal.

Rousseau diz que “uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha que se vender a alguém.”. Ou seja, para a sociedade ser livre e justa, o governo deve representar sua população, ser democrático e dar todo o seu poder ao povo. O responsável por esse papelseria chamado de Legislador, porém, essa tarefa era julgada tão além das possibilidades humanas, que o estudioso quase comparava a figura do representante com um deus. Deveria ser alguém que fosse capaz de mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, além de ter uma existência parcial e moral. Também defendia a ideia de que os governadores não poderiam permanecer muito tempo no poder, para evitar qualquer tipo de corrupção.

Em suma, os estudos de Rousseau alavancaram outros estudos imprescindíveis para o entendimento do capitalismo, a representatividade democrática e a soberania do povo. Além disso, levando em consideração que os temas abordados pelo estudioso estão na literatura desde o século XVIII, se comprova que a ignorância com correntes socialistas é algo cultural.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ROUSSEAU, Jean Jacques (1712-1778). O contrato social. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.


[1]  Graduanda em Relações Internacionais/FURG.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

John Locke e a acumulação de terra através do direito à propriedade

 Darwin Aranda Chuquillanque[1]

O médico e filósofo inglês John Locke (1632-1704) foi um dos precursores do liberalismo econômico e político. Locke também é considerado um contratualista, ou seja, assim como Thomas Hobbes ele também defende a ideia do contrato social entre a sociedade e o Estado. Ademais, é oportuno destacar que Locke também parte do estado de natureza, mas a concepção do estado de natureza difere entre Locke e Hobbes (MELLO, 2001, p. 84). Segundo Mello (2001, p. 84), Locke considerava que num estado de natureza o Homem vivia em paz e harmonia, oposto ao estado de natureza defendido por Hobbes onde a humanidade vivia na opressão, miséria, insegurança e violência, etc. Considerando que o entendimento sobre o estado de natureza difere entre os autores, é fato que as "cláusulas", quer dizer as prioridades do contrato social entre o povo e o Estado, sejam diferentes.

O contrato social do Hobbes priorizava a vida em detrimento das liberdades e propriedade privada. Por sua vez, Locke argumentava que no contrato social as pessoas consolidavam os direitos que tinham no estado de natureza (as pessoas viviam em paz) e ainda mais, as pessoas garantiam o direito à liberdade e propriedade, ou seja, através do contrato social a população outorga poder ao Estado que tem a finalidade de salvaguardar a propriedade privada (MELLO, 2001, p. 86).

Para defender o contrato social e, principalmente, o direito à propriedade, Locke parte do contexto da Inglaterra nesse período, pois esse país enfrentava diferentes crises sociais, guerras, mudanças no sistema econômico, invasões/apropriações, etc. Assim, os detentores de terras (burgueses) sempre corriam o risco de perderem suas propriedades, por exemplo. Portanto, a classe política burguesa, a qual Locke pertencia, precisava de mecanismos que garantissem o controle do poder. Nesse sentido, Locke realiza uma análise sobre a principal finalidade do Estado e defende que "[...] todo governo (Estado) não possui outra finalidade além da conservação da propriedade privada” (MELLO, 2001, p. 87). 

Após essa breve apresentação, o presente texto pretende abordar como o liberalismo defendido por Locke, especialmente a defesa ao direito da propriedade (terra), influenciou na apropriação e concentração de terras no mundo inteiro. 

Ora, como o liberalismo defendido por Locke influenciou na apropriação e concentração de terras no mundo? É oportuno destacar que os conceitos de apropriação e concentração estão incluídos dentro de outro conceito mais amplo conhecido na literatura como Land grabbing[2]. Para tentar responder a pergunta anterior, faz-se necessário, antes de tudo, responder à seguinte pergunta: O capitalismo surge na cidade ou no campo?

Conforme sustenta Wood (1998, p. 13), o capitalismo não surge nas cidades como muitos pensam, mas sim no campo. Segundo o autor supracitado, o capitalismo no campo rompe com os princípios básicos de relação do Homem com a natureza. Com o surgimento desse sistema econômico veio também a expansão dos mercados, assim mesmo os países adaptaram novas formas que permitissem garantir o crescimento econômico. No século XVI, a economia da Inglaterra estava concentrada na agricultura, nessa linha a terra era vista como um produto que poderia gerar muitos lucros através da produção de alimentos e principalmente pelo arrendamento da mesma. Essa produção e concentração de terras estavam nas mãos da burguesia inglesa que controlava o poder político e/ou tinha fortes relações com a monarquia (WOOD, 1998, p.17).

Na verdade, a partir do momento que a terra é vista como um bem produtor de riquezas, o acesso aos produtos gerados no setor agropecuário, como por exemplo, os alimentos, ficam limitados às pessoas que podem pagar por eles. Nas palavras de Denise Elias (2021, p. 5), o alimento é tratado como uma mercadoria, ou "[...] um bem econômico cujo propósito maior é auferir lucro, característica central do capitalismo [...]".

De acordo com Wood (1998, p. 13), no século XVI e XVII o setor agrário inglês foi o mais produtivo da história, isso porque a Inglaterra adaptou novas formas de produtividade nesse setor, também nesse período surge a expressão improvement (melhoramento). O "melhoramento" diz respeito à máxima produção da agricultura utilizando diversas técnicas, ferramentas e insumos de produção, mas para além do sistema produtivo o "melhoramento" preconizava o aumento da concentração e acúmulo de lucro (WOOD, 1998). Ademais o autor destaca que produtividade e lucro eram indissociáveis do "melhoramento", isso contribuiu para o fortalecimento e surgimento da classe agrária capitalista. Idem (1998) assinala que entre os defensores desse novo modelo agrário inglês se destacava John Locke. 

O novo modelo produtivista da agricultura gerou conflitos entre os membros de comunidades rurais e burguesia, pois para os capitalistas as terras comunais atrapalhavam o desenvolvimento do país, nesse sentido, muitas terras "livres" e terras comunais foram extintas em nome do "melhoramento" e, mais que isso, em nome do direito à propriedade (WOOD, 1998, p. 21). O que estamos querendo dizer é que as terras que eram usufruídas pelos membros de uma comunidade, por exemplo, foram apropriadas por agentes que procuravam o "melhoramento" do setor agrícola, tudo isso com anuência do Estado.

Para John Locke, num estado de natureza, a terra era um bem divino outorgado por Deus ao Homem e todos eles tinham direito sobre ela (LOCKE, 1960, p. 13), nesse sentido pode-se dizer que cada Homem deveria possuir uma fração de terra para sua reprodução social. Ora, se Locke defende que a terra é um bem divino para o Homem, como é possível que os homens menos favorecidos sejam excluídos desse presente de Deus? Como foram escolhidos os Homens por Deus para ficar com a terra? Para tentar responder essas perguntas Locke (1960, p. 13) argumenta que Deus deu terra a todos os Homens comuns, mas isso não quer dizer que todos esses têm a capacidade para permanecer com a terra. Nas palavras de Locke, Deus deu o uso da terra: 


"[...] Aos industriosos e racionais (e o trabalho seria seu título), não à fantasia ou cobiça dos briguentos e contenciosos. [...] nas terras que de alguma forma foram trabalhadas (melhoradas) ninguém poderia reclamar, ninguém devia se intrometer no que já foi improvement (melhorado) pelo outro [...]" (LOCKE, 1960, p. 13).


Observa-se que Locke utilizava o improvement (melhoramento) das terras para atribuir o direito à propriedade. De acordo com as colocações de Locke, o trabalho garante o direito à propriedade, pois considera que o homem é dono de seu trabalho (MELLO, 2001, p. 85). Interessante é pensar, que tipo de trabalho Locke está defendendo para considerar que dono da terra é quem faz "melhoramentos"? Se considerarmos que: "Terra e o trabalho não são separados: O trabalho faz parte da vida, a terra continua sendo parte da natureza, a vida e a natureza formam um todo articulado" (POLANYI, 2000, p. 109), pode ser que Locke tenha desconsiderado as diversas relações do homem com a natureza e, principalmente, a função social da terra.

Na verdade, pode ser que Locke não esteja questionando o trabalho propriamente dito, mas sim a utilização da propriedade (terra) como um bem produtivo e lucrativo. Dessa maneira, terras sem "melhoramentos" são consideradas um desperdício de dinheiro, portanto, outorgam o direito de apropriação às pessoas que estão dispostas a "melhorá-las" (WOOD, 1998, p. 22). É evidente que essa apropriação e acumulação de terra, (Land grabbing) não é possível sem o contrato social entre o Homem e o Estado, pois este último, através de suas legislações e leis, facilita o acesso e protege a propriedade privada dos novos donos de terras. 

Finalizando, não se pode atribuir a Locke que milhões de pessoas no mundo inteiro não possuam sequer uma fração de terra para sua moradia, mas também não se pode descartar que suas teorias de liberalismo e direito à propriedade (através do trabalho) contribuíram para a expropriação e acumulação de terras, pois, como foi falado, ele defendia o "melhoramento" da propriedade, e esse "melhoramento" consistia na produtividade e lucro. É óbvio que as condições sociais, econômicas e principalmente a relação do homem com a Natureza difere entre pessoas e povos, portanto não se pode esperar que todo Homem tenha a visão de produtividade e lucro da terra. Tudo parece indicar que o direito à propriedade (terra), que defendia Locke, era limitado para um determinado grupo de pessoas que possuíam os meios e condições necessárias para realizar "melhoramentos" da terra, procurando o tão sonhado "desenvolvimento".

Ao longo do tempo a humanidade evoluiu muito como sociedade, e as contribuições de Locke sobre liberdade e direito à propriedade foram fundamentais para essa evolução. Contudo, em alguns casos, como o do direito à propriedade através do trabalho visando o "melhoramento" da terra defendido por Locke, foi excludente. Nesse sentido, ainda não fomos capazes de encontrar ou aplicar estratégias que possibilitem às pessoas o direito básico que é o acesso a terra e alimentação. Talvez a definição de Maquiavel sobre a natureza do Homem que o considera um ser ávido de lucro e poder, ingrato e egoísta, sejam muito pertinentes na atualidade. E, por fim, não se trata de ser contra ou a favor de adaptar novas tecnologias nos sistemas produtivos, ou ser contra as liberdades de direito de propriedade, se trata de analisar e discutir um sistema econômico estrutural que é excludente e opressor com o Homem e com a Natureza. 


Referências


BORRAS Jr. S; KAY, C; GÓMEZ, S; WILKINSON, J. Acaparamiento de tierras y acumulación capitalista: aspectos clave en América Latina. Revista Interdisciplinaria de Estudios Agrarios Nº 38 - 1er semestre. 2013.


ELIAS, D. O alimento-mercadoria e a fome no Brasil. Boletim Goiano de Geografia. v. 41: .e69103. DOI. 10.5216/BGG.v41.69103. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/bgg/article/view/69103/36944. Acesso em: 20 set. 2021.


LOCKE, J. Two treatises of government. Disponível em: www.gutenberg.org/files/7370/7370-h/7370-h.htm. Aceso em. 21/09/2021.


MELLO, L. I. A. John Locke e o individualismo liberal. In.WEFFOR, F. C (Org.). Os clássicos da política. São Paulo; Editora Ática, 2001, 1 volume.


POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro; Campus, 1980, 7ª edição.


WOOD, E. M. As origens agrárias do capitalismo. Monthly Review. v, 50. n, 3. 1998

[1]  Graduando em Relações Internacionais/FURG e Doutorando em Desenvolvimento Rural/UFRGS. E-mail: darandadarwin@ufrgs.br
[2] Ações de captura e controle sobre extensões relativamente vastas de terras e outros recursos, através de uma variedade de mecanismos e modalidades, envolvendo capital de grande escala que, atuando em modalidades extrativistas, seja respondendo a fins nacionais ou internacionais, busca responder à convergência da crise alimentar, energética e financeira, as necessidades de mitigação das alterações climáticas e da procura de recursos pelos novos núcleos de capital global (Borras et al., 2013, p. 82).