A Crise de Legitimidade dos Prefeitos
das Minorias
Ana Paula Dupuy Patella[1]
Suprimidos na Idade Média Ocidental, o
conceito e as práticas democráticas são retomados na modernidade, a partir de
quando o conceito de cidadão vai se alargando – o que dificulta a implementação
da democracia direta, nos moldes daquela vista na Grécia Antiga e faz nascer a
ideia de representação. Na democracia representativa, a igualdade e a liberdade
dos cidadãos são garantidas mediante o voto. Todos têm o mesmo direito, sendo
dada a mesma importância a cada um dos votos (PASE, 2016).
A partir dessa ideia, surgem, nas
teorias contemporâneas, duas importantes correntes: “de um lado, predomina uma
interpretação cujo cerne considera os procedimentos políticos do regime; e, de
outro, uma interpretação que prima pela análise da substância da democracia”
(PASE, 2016, p. 16).
Nessa primeira linha, de democracia
enquanto procedimento, para Schumpeter (1961, p. 291), um dos expoentes da
concepção minimalista da democracia, o regime é apenas um método. Em outras
palavras, segundo o autor, democracia é “um certo tipo de arranjo institucional
para se alcançarem decisões políticas - legislativas e administrativas -, e,
portanto, não pode ser um fim em si mesma, não importando as decisões que
produza sob condições históricas dadas”.
Em resumo, de acordo com essa
concepção, para se caracterizar um regime como democrático, basta que sejam
seguidas as condições procedimentais acima descritas, não relevando, para
tanto, “as questões de igualdade social e da responsabilidade pública ou
accountability” (PASE, 2016, p. 17).
Por outro lado, a corrente que
considera importante a substantividade para caracterizar o regime democrático
afirma a necessidade de se “superar o mito que reduz a democracia ao processo
técnico, sem examinar o seu verdadeiro conteúdo, que é o resultado da soma de
valores éticos e culturais historicamente determinados” (VALDÉS, 2002, p. 36).
Quer dizer, “Esse polo teórico
constitui uma interpretação diferenciada e sofisticada na definição de
democracia, na medida em que a conceitua através de características
substantivas, cujo princípio é a igualdade de condições sociais, intelectuais e
culturais” (PASE, 2016, p. 18).
Deste modo, democracia substancial pode
ser definida como aquela democracia de conteúdo, que pressupõe a realização dos
direitos fundamentais e, mais que isso, a realização dos cidadãos em todas as
suas potencialidades. Por óbvio, essa concepção democrática não dispensa a atenção à democracia procedimental, somente pautada no construto do desenho institucional. Ao
contrário, esta pode ser encarada como um meio de alcance daquela (BAQUERO,
2003).
Na América Latina, hoje, vemos regimes
democráticos que aparentemente atendem o mínimo procedimental exigido para a
caracterização da democracia shumpeteriana, tendo em vista que realizam
eleições gerais, periódicas, com a legitimação e a efetiva assunção do poder
pelos vencedores.
No entanto, não se pode dizer o mesmo
do caráter substancial da democracia. Além das sabidas dificuldades que a
população enfrenta para ver garantidos os mínimos necessários para a
subsistência digna, o procedimento eleitoral não tem garantido uma relevante legitimidade
dos eleitos junto aos cidadãos, sobretudo em virtude da descrença na prática
política inegável nos estados latino-americanos – que gera ausência de
engajamento, participação e consequentemente sentimento de representatividade.
Além desse desencontro entre regras
democráticas e sentimento de representatividade subsumível das democracias
latinoamerica, há, na legislação brasileira, uma previsão normativa específica
que pode estar ocasionando uma crise de legitimidade nos representantes do
Executivo Municipal, em colégios eleitorais de menos de duzentos mil eleitores.
Justamente para garantir a legitimidade
dos eleitos, na grande maioria das democracias ocidentais, o sistema de eleição
dos cargos da majoritária se dá em duas voltas, exigindo-se, assim, que os
eleitos atinjam a maioria absoluta dos votos válidos.
No Brasil, a Constituição Federal prevê
o sistema em duas voltas para as eleições presidenciais, de governadores e de
prefeitos em municípios com mais de duzentos mil eleitores.
Conforme prevê o artigo 29, inciso II,
da Constituição Federal, a eleição do Prefeito e Vice-Prefeito, será “realizada
no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que
devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais
de duzentos mil eleitores” (BRASIL, 1988).
Essa regra do artigo 77 da Constituição
Federal, é justamente a que prevê a realização de dois turnos eleitorais para
garantir que o eleito alcance a maioria absoluta dos votos (BRASIL, 1988).
Acontece que, com a exceção
estabelecida de que municípios com menos de duzentos mil eleitores não terão a
realização de segundo turno, ocorre a eleição de representantes para o cargo do
executivo municipal, sem que os mesmos tenham atingido a maioria absoluta dos
votos válidos.
Ou seja, prefeitos de Municípios de
menos de duzentos mil eleitores acabam por ser eleitos mesmo sem ser a escolha
da maioria dos eleitores politicamente mobilizados que se deslocaram até a urna
para expressar a sua opção sem anular ou votar em branco. Por exemplo, em um
Município com quatro candidaturas majoritárias, quando um candidato atinge 20%
dos votos válidos, outros dois candidatos atingem 25% dos votos válidos cada um
e o quarto candidato obtém 30% dos votos válidos, este último se elege mesmo
não sendo a opção de 70% dos eleitores que se mobilizaram e fizeram uma
escolha.
Obviamente, tal situação (sobretudo em
tempos de crise econômica e política, que ocasionam acirramento dos ânimos e
agravamento das necessidades da população em geral) impacta diretamente na
legitimidade dos eleitos, que já iniciam os seus mandatos em flagrante
insatisfação de mais da metade da população.
Tal desconexão entre a vontade da
maioria dos eleitores e o resultado do pleito eleitoral, talvez desconsiderada
pela democracia procedimental e principalmente pela previsão constitucional,
pode atingir quase a totalidade dos Municípios brasileiros, já que apenas 1,7%
(um virgula sete por cento) dos colégios eleitorais brasileiros alcançam mais
de duzentos mil eleitores e realizam segundo turno eleitoral (segundo dados do
Tribunal Superior Eleitoral).
Como visto, aquilo que parece ser um
problema apenas da concepção substancial da democracia pode revelar um dos
vícios procedimentais que contribuem para a crise política e para a descrença
popular na mobilização como saída para o enfrentamento dos problemas sociais,
porque em quase 99% dos Municípios brasileiros o voto da maioria não é
necessariamente acatado.
BAQUERO, Marcelo. Construindo uma outra
sociedade no Brasil. O papel do capital social na estruturação da cultura
política participativa, Revista Sociologia e Política, Curitiba, n. 21,
p. 83-108, nov/2003.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.
PASE, Hemerson
Luiz. Capital Social e Desenvolvimento: a experiência do Rio Grande do Sul.
Pelots: Ed. UFPel, 2016.
SCHUMPETER,
Joseph. A. Sociologia do imperialismo. In: SCHUMPETER, J. A. Imperialismo e
classes sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1961.
VALDÉS, Julio.
Culture and development for debate. Latin American Perspectives. Issue,
125, vol. 29, n. 4, 2002.
[1] Advogada, Mestre em
Direito e Justiça Social e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: anapaulapatella@gmail.com.
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