quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A Alienação Parental e a Formação de uma Nova Minoria

 

A Alienação Parental e a Formação de uma Nova Minoria

Ana Paula Dupuy Patella[1]

A alienação parental é um fenômeno social decorrente das relações familiares da contemporaneidade. Uma vez resolvido um problema que outrora punha fim às expectativas de felicidade de muitos, consubstanciado na indissolubilidade dos casamentos constituídos, sobreveio um novo problema, decorrente da dissolução das uniões, ou até das relações não estáveis que culminam na gênese de prole em comum, qual seja: a regulamentação e a proteção da relação de parentalidade, esta sim indissolúvel, bem como a proteção dos filhos contra o ataque aos vínculos naturais dela decorrentes.

A necessidade dessa proteção foi reforçada por outro fenômeno social da contemporaneidade, este ainda em fase de consolidação: a reconfiguração dos papéis familiares ante o empoderamento feminino, a atuação da mulher no mercado de trabalho e a divisão de tarefas domésticas igualitariamente entre os componentes da entidade familiar.

Quer dizer, se outrora tinha-se por inequívoco que às mulheres cabia o cuidado do lar e dos filhos, enquanto os homens eram encarregados de garantir meios de subsistência à família, hoje sabe-se que tal divisão de tarefas tende a se dar de forma mais equânime, mediante a contribuição de ambos os genitores tanto com a subsistência familiar quanto com o cuidado da prole.

Assim, vemos uma nova configuração familiar, da qual, de regra, vemos aumentados os vínculos de afeto dos pais pelos filhos, bem como o sentimento de responsabilidade daqueles para com o bem-estar quotidiano destes.

Obviamente, se estamos diante de novas configurações familiares, necessitamos também de novas configurações de desconstituição da entidade familiar, pois uma vez dada a inserção do homem nas atividades quotidianas de cuidados com os filhos durante a união constituída, porque deixariam estes de poder (e dever) cumprir esse papel, em decorrência de eventual rompimento conjugal?

Em outras palavras, se durante a manutenção da relação conjugal o pai divide tanto o custeio das despesas da prole, quanto o cuidado e a atenção diários com a mesma, porque, após o fim do matrimônio, teríamos que voltar para a velha configuração patriarcal de “pai pagador” e “mãe cuidadora”?

A resposta é simples e lógica: não teríamos e não temos (ao menos em tese). Ora, se hoje vemos pais participativos no cuidado dos filhos e podemos proporcionar às crianças e aos adolescentes o contato com ambos os genitores, independentemente da configuração familiar, garantindo-se a eles experiências completas de afeto e de relações de parentalidade, que permite a completude da compreensão e vivência de suas origens, contraria a lógica do razoável pensar em privá-los de tudo isso, em prol do velho costume mantido pela cultura patriarcal.

No entanto, a superação dessa cultura patriarcal ainda é uma demanda e não uma realidade.

A sociedade, como um todo, mantém no seu íntimo um senso comum, quase um instinto, que favorece a reprodução da lógica da “mãe cuidadora” e do “pai pagador” e com isso os indivíduos tendem a naturalizar e até aprovar e apoiar condutas impeditivas da inversão dessa lógica.

Senão, vejamos.

Ao apresentarmos o seguinte questionamento ao cidadão médio: pode a mãe afastar deliberadamente os seus filhos do contato com o pai? A resposta quase unânime (talvez porque politicamente correta) será: não, obviamente.

Agora, se apresentarmos ao mesmo cidadão a seguinte pergunta: pode o pai reivindicar que o seu filho de um ano pernoite em sua residência sem a companhia da mãe? A resposta quase unânime (talvez um pouco mais constrangida) será: mas ele é tão pequeno, não pode ficar longe da mãe.

Ora, mas do pai pode?

O mesmo exercício pode ser refeito com inúmeras perguntas, como por exemplo: pode a mãe optar por mudar o seu domicílio de cidade, levando os filhos consigo para longe do pai? E o pai, pode fazer o mesmo, levando os filhos para local distante da moradia materna? Ou ainda: você acredita que a mãe pode pedir a guarda dos filhos para si, concedendo visitas ao pai sempre que este desejar, desde que combine previamente com ela? E o pai, pode?

Tal exercício demonstra o quanto a cultura patriarcal está enraizada no nosso pensamento e, por isso, inegavelmente, se reflete nos atos, seja de mães, seja de pais, que, ao pôr fim em uma relação conjugal, precisam definir o seu posicionamento e participação na vida dos filhos. As mães tendem a se posicionar como únicas e exclusivas cuidadoras, concedendo aos pais o direito de visitas aos filhos e os pais naturalmente aceitam as restrições impostas porque, no seu íntimo, se sentem socialmente obrigados a responsabilizar-se unicamente pelo custeio da vida dos menores.

Obviamente, não se desconhece a situação de inúmeros pais que justamente por estarem mais enraizados na cultura patriarcal, com o rompimento da relação conjugal, abandonam também o acompanhamento dos filhos, inclusive com boa parcela tentando esquivar-se do dever de pensionamento; ou ainda a situação de milhares de crianças cujos pais se aproveitam desse patriarcalismo para sequer assumir a paternidade dos descendentes.

Acontece que, a superação de um senso que acompanha a nossa socialização há séculos não é instantânea e nem incontroversa. Se a própria participação da mulher no mercado do trabalho assim como todas as outras pautas feministas ainda demandam luta e resistência, não há como pensar que o compartilhamento do cuidado dos filhos entre pais e mães possa estar naturalizado.

O que se identifica, sim, inequivocamente, é uma crescente demanda de pais que manifestam interesse no envolvimento com as questões da prole, reivindicando, inclusive judicialmente, o reconhecimento do direito de convívio e de cuidado para com os seus filhos.

Aliás, direito esse que não pode ser tratado como única e exclusivamente dos pais, porque também se configura em um direito dos próprios filhos, pois os efeitos da ausência paterna são marcantes para todo o desenvolvimento, independentemente da causa dessa ausência. Ainda, em última instância, pode-se dizer que se trata de um direito também da mãe, que não pode ser unicamente responsabilizada pela readaptação de toda a sua vida pessoal, profissional e social em virtude das necessidades da prole.

A despeito de tudo isso, de consubstanciar um direito de todos os componentes da entidade familiar e que, independentemente de qualquer disputa discursiva, só tende a beneficiar o desenvolvimento dos menores envolvidos, a ampliação da convivência e o compartilhamento dos cuidados com os filhos após a dissolução da sociedade conjugal ainda encontra massiva resistência, seja social, seja institucional.

Exatamente por encontrar esse terreno fértil, condicionado pela cultura patriarcal enraizada na sociedade, muitas mulheres, insatisfeitas com o término do casamento ou simplesmente por estarem imersas na cultura do patriarcado, naturalizado pela sua socialização, tendem a negar a possibilidade de compartilhamento dos cuidados dos filhos com os pais, não admitindo o pai e a família paterna como também cuidadores da prole em comum.

Extrapolando esses casos, algumas mães (aí com um maior nível de dolo) ultrapassam a mera ausência de compreensão dos benefícios do compartilhamento quotidiano do cuidado e convívio com os filhos para todos os envolvidos e passam a atacar o vínculo de parentalidade existente com a família paterna, denegrindo a imagem do genitor e sua parentela e dificultando o convívio ou até impedindo qualquer contato.

Contrapondo-se a essa resistência, é crescente o número de pais que, diante da reivindicação feminista por maior participação do homem no lar, passaram a sentir os prazeres da paternidade e consequentemente começaram a não aceitar o rompimento conjugal como um fim da relação também com os filhos, reivindicando a manutenção do seus vínculos com a prole e exigindo o reconhecimento e o respeito a essa relação.

Como se vê, trata-se, talvez pela primeira vez, de homens colocados em uma posição de minoria que necessita lutar social e institucionalmente contra a cultura do patriarcado para ver respeitado o seu direito à igualdade – no caso, igualdade parental.

 



[1] Advogada, Mestre em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: anapaulapatella@gmail.com


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